No século XVII, a noção de uma "teoria do conhecimento" baseada na compreensão dos "processos mentais" é atribuída a Locke; a noção de "mente" como entidade distinta em que ocorrem "processos", a Descartes; a noção da filosofia como tribunal da razão pura, a Kant. No século XIX, a noção de filosofia como uma disciplina fundamental que "funda" as pretensões do conhecimento foi consolidada nos escritos neokantianos. Dessa forma, a Filosofia torna-se, para os intelectuais, um substituto da religião, pois preocupavam-se em mantê-la "rigorosa e científica".
Essa aparente predominância da Filosofia entra em crise devido a dois fatores: 1º), a esta altura era quase completo o triunfo dos laicos sobre as pretensões religiosas; 2º), surge uma nova forma de cultura, que eram os escritores de poemas, romances, novelas e tratados políticos. O discurso laico, que se populariza, desvia-se da lógica racional que os filósofos intentavam com as suas teorias do conhecimento. O espaço cultural fica dividido, e os escritos filosóficos perdem terreno para esses outros gêneros literários.
No início do nosso século, nomeadamente Russell e Husserl, preocupavam-se em retomar a Filosofia como "científica e rigorosa". Mas havia uma nota de desespero em suas vozes, porque a cultura laica monopolizava cada vez mais a atenção dos leitores. Em resultado, quanto mais "científica e rigorosa" se tornava a filosofia, menos ela tinha a ver com o resto da cultura e mais absurdas pareciam as suas pretensões tradicionais.
É de encontro a este fundo que surgiram Wittgenstein, Heidegger e Dewey. Cada um deles tentou uma nova maneira de tornar a Filosofia "fundamental" — uma nova maneira de formular um contexto último para o pensamento. Wittgenstein procurou construir uma nova teoria da representação que nada teria a ver com o mentalismo. Heidegger tentou construir um novo conjunto de categorias filosóficas que nada teriam a ver com a ciência, a epistemologia, ou a busca cartesiana da certeza, e Dewey tentou constuir uma versão naturalizada da visão hegeliana da história.
Todos os três vieram a achar auto-ilusório o seu esforço inicial, uma tentativa de conservar uma certa concepção de filosofia após terem sido abandonadas as noções necessárias para dar corpo a essa concepção (as noções seiscentistas de conhecimento e mente). Todos os três, nas suas últimas obras, se libertaram da concepção kantiana da filosofia como fundamento e dedicaram o seu tempo a prevenir-nos contra aquelas mesmas tentações a que eles próprios haviam sucumbido.
Assim sendo, essas últimas obras são mais terapêuticas do que construtivas, mais edificantes do que sistemáticas, concebidas de modo que o leitor questione o seu próprio motivos para filosofar, em vez de lhe fornecerem um novo programa filosófico.
Fonte de Consulta
RORTY, R. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa, Dom Quixote, 1988.
São Paulo, 12/04/1998
Essa aparente predominância da Filosofia entra em crise devido a dois fatores: 1º), a esta altura era quase completo o triunfo dos laicos sobre as pretensões religiosas; 2º), surge uma nova forma de cultura, que eram os escritores de poemas, romances, novelas e tratados políticos. O discurso laico, que se populariza, desvia-se da lógica racional que os filósofos intentavam com as suas teorias do conhecimento. O espaço cultural fica dividido, e os escritos filosóficos perdem terreno para esses outros gêneros literários.
No início do nosso século, nomeadamente Russell e Husserl, preocupavam-se em retomar a Filosofia como "científica e rigorosa". Mas havia uma nota de desespero em suas vozes, porque a cultura laica monopolizava cada vez mais a atenção dos leitores. Em resultado, quanto mais "científica e rigorosa" se tornava a filosofia, menos ela tinha a ver com o resto da cultura e mais absurdas pareciam as suas pretensões tradicionais.
É de encontro a este fundo que surgiram Wittgenstein, Heidegger e Dewey. Cada um deles tentou uma nova maneira de tornar a Filosofia "fundamental" — uma nova maneira de formular um contexto último para o pensamento. Wittgenstein procurou construir uma nova teoria da representação que nada teria a ver com o mentalismo. Heidegger tentou construir um novo conjunto de categorias filosóficas que nada teriam a ver com a ciência, a epistemologia, ou a busca cartesiana da certeza, e Dewey tentou constuir uma versão naturalizada da visão hegeliana da história.
Todos os três vieram a achar auto-ilusório o seu esforço inicial, uma tentativa de conservar uma certa concepção de filosofia após terem sido abandonadas as noções necessárias para dar corpo a essa concepção (as noções seiscentistas de conhecimento e mente). Todos os três, nas suas últimas obras, se libertaram da concepção kantiana da filosofia como fundamento e dedicaram o seu tempo a prevenir-nos contra aquelas mesmas tentações a que eles próprios haviam sucumbido.
Assim sendo, essas últimas obras são mais terapêuticas do que construtivas, mais edificantes do que sistemáticas, concebidas de modo que o leitor questione o seu próprio motivos para filosofar, em vez de lhe fornecerem um novo programa filosófico.
Fonte de Consulta
RORTY, R. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa, Dom Quixote, 1988.
São Paulo, 12/04/1998
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