A tese da evolução linear do mito à
razão não só é historicamente inexata como também não consegue explicar certos
fenômenos culturais complexos. No caso extremo, o mito é rebaixado a uma fábula
sem valor. É preciso ponderar sobre a dialética mytho/logos,
pois já se afirmou que o homem é um ser mítico. Quer dizer, trazemos jungidos
ao nosso psiquismo os condicionamentos das diversas narrativas fantasiosas e
dos feitos das divindades do politeísmo.
Platão, na Antiguidade, parte da
narrativa mítica para fundamentar o seu logos filosófico.
Criava uma situação utópica, principalmente nas suas teses políticas, a fim de
explicar uma realidade efetiva. Aristóteles, por outro lado, exclui a narração
mitológica, enfatizando que a razão do filósofo, o logos,
manifesta-se através das suas próprias estruturas discursivas: a argumentação,
o raciocínio, a ordem lógica da demonstração.
A fronteira entre o mytho e
o logos não é percebida com facilidade. Nesse sentido, a
astrologia e as demais pseudociências do universo acabaram caindo no mito que
combatiam. Vindas para desmoronar o sacrifício das religiões oficiais, terminam
criando o cosmo como um grande Anthropos, um homem cuja
inteligência reside no movimento eterno e harmônico das esferas celestes, cujos
olhos correspondem ao Sol e à Lua e a cujos pés jaz a matéria, num jogo sutil
de correspondências regido por um único tema que varia até o infinito.
O mytho/logos do
cristianismo primitivo apresenta uma novidade: o logos se
divinizou e ao mesmo tempo se personalizou a ponto de coincidir com a própria
pessoa do fundador. Observe que o mito da Trindade provindo das grandes
religiões da Antiguidade - como vemos na trindade egípcia formada por Osíris,
Ísis e Horus - deu à Igreja a possibilidade de incluir o Cristo na Mitologia
Cristã como a segunda pessoa de Deus, de maneira que a Igreja, fundada pelo
Cristo segundo a interpretação católica-romana, podia se apresentar como
instituição divina do próprio Deus em pessoa.
A ciência e o mito se digladiam, mas
nem sempre com muita razão. A ciência pelo seu próprio objeto, que é baseado
nos fatos e nas comprovações estatísticas, acaba desmitificando o mito.
Acontece que a ciência elabora apenas com o sensível. Ignora que a narração, o
mito, é um instrumento de expressão certamente diferente da argumentação lógica
do logos, mas no fim o mito não é menos lógico, não é menos
racional, nem está menos ligado a uma exigência e a um projeto de conhecimento.
A ambígua conexão do mito com uma
dimensão temporal não pode nos tirar o ensejo de penetrar-lhe na sua
profundidade. Vejamo-lo sem preconceitos e poderemos lançar-nos no campo mais
vasto de nossa compreensão espiritual.
Fonte: GIL, F. (Editor). Enciclopedia Einaudi.
Lisboa, Imprensa Nacional, 1985-1991.
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Mythologein
No livro, A República, a
articulação entre o mythos e o logos é
tamanha, que Platão usa o verbo mythologein para expressar
essa junção. Há, assim, o mito propriamente dito, como é o caso do mito do anel
de Giges, e formulações míticas completamente misturadas com o discurso
argumentativo, como é o caso do mito da caverna. Mythologein é
verbo intraduzível. Todas as figuras emanadas deste verbo servem para um
aprofundamento do pensamento, pois tudo o que aí é dito dirige-se à
inteligência no seu nível mais elevado.
O livro I, de A República, desdobra-se
na intenção de responder à questão: “o que é justo?”. Tem como objetivo, no
meio de toda a mistura do mythos/lógos obter a unidade.
Céfalo, o anfitrião da conversa filosófica, sabe perfeitamente o que é justo.
Achava-se leve e preparado para a morte. Mas esse sentimento de leveza diante
da morte é como se fosse um mito: diante da morte não importa parecer justo,
mas sê-lo. Eis o um: ser e não parece ser. Mas o que é o um? O que é o ser? O
que é o parecer ser? Depois da confusão, este questionamento requer um
esclarecimento, que Platão dará em forma de uma demonstração do bem.
Platão parte de uma analogia entre o
bem e o Sol. É a descrição do mito da caverna. Não o faz para facilitar o tema,
mas para aprofundá-lo. Há dificuldade de se entender os homens presos no fundo
da caverna. Sua compreensão requer uma reconstrução da visão do ser humano: é o
próprio ser humano que tem que se ver como homem livre ou como escravo.
Contudo, o ser humano deverá fazer um esforço de se deslocar do lugar que está
para um nível de mais compreensão, para o Sol.
Para Platão, a transformação da criança
em adulto não é tarefa fácil. Por isso, em cada etapa do caminho há a confusão
entre o ser e o parecer ser. É por isso que tomamos os sonhos pela realidade.
Vemos como crianças, quando deveríamos ver como homens maduros. Mas, para
vermos como homens maduros devemos aprender, pois para os gregos o logismós,
o discernimento, é o primeiro estado do aprender e é quando e onde começa a vir
a ser homem. Suportar a clareza do Sol é que mostra a diferença entre o ser e o
parecer ser
Os gregos tinham a convicção de que só
quem aprende é que pode ensinar. Por isso, eles acreditavam que somente os
filósofos, que percorreram o rude caminho da aprendizagem até o Sol, eram os
seres capacitados a ensinar.
BOCAYUVA, Izabela. Para uma Nova
Interpretação do Relacionamento entre Mito e Logos na Origem da
Filosofia. In: MEES, Leonardo, PIZZOLANTE, Romulo (Orgs.). O
Presente do Filósofo: Homenagem a Gilvan Fogel. Rio de Janeiro: Mauad X,
2008.
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