Notas
extraídas do livro Em Favor da Dúvida: Como Ter Convicções Sem se
Tornar Fanático.
Começa indagando como é
possível ter fé na ausência de certeza. Depois, acrescenta: como a incerteza
religiosa coexiste com a certeza moral?
1. Os
muitos deuses da modernidade
Nietzsche havia proclamado a
morte de Deus. Hoje, temos uma infinidade de deuses competindo pela atenção e
lealdade das pessoas. O iluminismo advogava a vitória da razão e, com isso, o
declínio da religião. Não foi o que ocorreu. Além de não haver o declínio,
corremos o risco do fanatismo religioso, principalmente com a ascendência do
islamismo.
Distinção entre pluralidade e
pluralismo: a "pluralidade" se refere a uma realidade social (uma
realidade que pode ser aceita ou criticada), o "pluralismo" é a
atitude, possivelmente expandida na forma de uma filosofia completa, que aceita a
realidade.
Na era neolítica, as
possibilidades de escolha eram muito limitadas. Hoje, com a descobertas
tecnológicas podemos escolhas ilimitadas, inclusive a de, mesmo sendo homem,
dizer-se que é do sexo feminino.
A modernização produz a pluralidade.
A pluralidade afeta a escolha. Na religião, por exemplo, muitos usam
o termo "preferência religiosa", à semelhança da
preferência do consumidor numa relação de troca. Não é preciso ser
católico, escolhe-se ser católico.
2. A
dinâmica da relativização
O que é relativização? É mais
fácil entender o relativismo olhando o seu oposto. O oposto de relativo é
absoluto.
A relativização é o processo no
qual o status absoluto de alguma coisa é enfraquecido ou, em caso extremo,
destruído.
O uso do "é claro"
(sem questionamento). Um americano hoje apresenta uma mulher como sua esposa.
Alguém pergunta: "Essa é a sua única esposa?" "É claro",
ele responde, possivelmente num tom irritado.
As defesas cognitivas. As
informações que contradizem o nosso modo de pensar são logo rechaçadas.
Exemplo: indivíduos que sustentam posição política X fogem dos que sustentam
posição política Y.
3.
Relativismo
A Reforma Protestante do século
XVI constituiu o mais importante questionamento do antigo monopólio da Igreja
católica. E Roma se mostrava longe de estar preparada para aceitar esse fato;
pelo contrário, eles fizeram o possível para impedir a modernização.
A filosofia ocidental moderna
teve início com René Descartes elevando a dúvida a um princípio metodológico
básico no século XVII. Para Descartes, a única coisa que não pode ter dúvida é
o "eu" que duvida. Daí, "a grande virada na direção do
subjetivo".
Três pensadores ratificaram o
relativismo: Marx, Nietzsche e Freud. Marx afirmou que noções de verdade são
relativas em termos da posição de classe ocupada pelo indivíduo (luta de
classes). Nietzsche via a relatividade em termos da vontade de poder. Para ele,
as ideias são armas na luta pelo poder. Freud via as ideias como racionalização
de desejos subconscientes. Todos deram força à "arte da
desconfiança".
O maior problema do relativismo
é sua falsa epistemologia. Dito de forma simples, todas as versões do
relativismo expressam as dificuldades da busca da verdade. Existem fatos neste
mundo e, ao buscar determinar os fatos, a objetividade é
possível.
Todas as formas de relativismo
contradizem a experiência da vida comum, fundamentada no bom-senso.
O relativismo, com sua
moralidade individual, e não coletiva, é um convite ao niilismo.
4.
Fundamentalismo
O termo
"fundamentalismo" tem sido utilizado de modo bastante flexível no
discurso recente - nos círculos acadêmicos, na mídia e também em conversas
cotidianas.
O termo se originou no início
do século XX, quando dois abastados senhores de Los Angeles criaram um fundo de
250 mil dólares para financiar a produção e a distribuição de uma série de
livretos que visavam defender o protestantismo conservador do avanço da
teologia liberal e modernizadora. Movimento reativo.
Para os cientistas sociais, os
termos se tornam nebulosos quando são amplamente utilizados, tanto no vernáculo
quanto no discurso acadêmico. A alternativa é aceitar os termos como de uso
comum, mas buscar acentuar sua precisão para compreender melhor a realidade
social à qual eles se referem.
O termo
"fundamentalismo", nos dias de hoje, se refere a uma realidade
empiricamente verificável. Três aspectos dessa realidade devem ser enfatizados:
1) o fundamentalismo é um fenômeno reativo; 2) o
fundamentalismo é um fenômeno moderno; 3) o fundamentalismo é muito
diferente do tradicionalismo.
Diferença entre fundamentalismo
e tradicionalismo. O tradicionalismo significa que a tradição é
aceita sem questionamento; o fundamentalismo surge quando o
não questionamento é contestado ou totalmente perdido.
Característica final: o fundamentalismo
é uma tentativa de recuperar o não questionamento de uma tradição normalmente
visto como um retorno ao passado imaculado (real ou imaginário) da tradição.
Comparando o fundamentalismo com o relativismo. O relativista adota a
dinâmica relativizante da modernidade; o fundamentalista a rejeita.
O projeto fundamentalista
assume duas versões. Na primeira versão, os fundamentalistas tentam dominar
toda uma sociedade e impor sua crença sobre ela; na segunda, abandona a
imposição para a sociedade inteira, mas tenta instituir o não questionamento da
crença fundamentalista em uma comunidade muito menor.
Os fundamentalistas enfatizam a
"conversão" (não importa se essa conversão for súbita ou gradual,
voluntária ou coagida).
O requisito mais básico é comum
a todas as seitas e ecoa os requisitos de um Estado totalitarista: não
deve haver uma comunicação significativa com outsiders. (Exemplo:
técnica comunista de lavagem cerebral)
O segundo requisito para a
conversão em uma seita se fundamenta no primeiro e também espelha o
totalitarismo: não deve haver dúvida.
Se o perigo imposto pelo
relativismo a uma sociedade estável for o excesso de dúvida, o perigo do
fundamentalismo é uma insuficiência de dúvida.
5. Certeza
e Dúvida
O romancista austríaco do
século XX Robert Musil observou, com a ironia característica de seus textos,
que "a voz da verdade tem um tom suspeito". A verdade é menos certa
ou absoluta do que desejaria o "verdadeiro crente".
A verdade e a loucura algumas
vezes são irmãs gêmeas antagônicas porém estranhamente unidas. O psicólogo
social Milton Rokeach, no início dos anos 1960, estudou três pacientes mentais
em três instituições diferentes, e os três acreditavam ser Jesus Cristo.
Rokeach achava que eles poderiam ser curados desse delírio reunindo os três em
uma única instituição, com a finalidade de eliminar a dissonância
cognitiva, pois o Cristo deve ser único. Um deles aproximou-se da solução:
aquilo era um grande absurdo, porque só uma pessoa pode ser Jesus Cristo. Sem
dúvida, o Messias cristão não era nenhum dos dois malucos, mas ele
próprio.
Apesar de os grupos
fundamentalistas religiosos serem diversos, eles possuem três características
principais em comum: têm muita dificuldade de ouvir opiniões e ideias
discordantes. Em segundo lugar, alegam estar de posse de uma verdade
irrefutável (seja religiosa ou secular). Em terceiro lugar, alegam que sua
verdade é a única verdade; em outras palavras, declaram deter
o monopólio sobre a verdade.
O iluminismo também produziu o
próprio fanatismo assassino.
O que, então, é a dúvida? A
dúvida é um fenômeno um tanto quanto complexo - multifacetado e pluriforme.
Para começar, existe a dúvida tanto superficial quanto profunda.
Erasmo, no seu Elogio
da Loucura, tentou dizer que a Sabedoria vê a Loucura como quem se olha no
espelho. Mas o contrário também é verdadeiro, já que, quando a Loucura se
coloca diante do espelho, vê a Sabedoria refletida.
A dúvida é uma proposição do
tudo ou nada? Parece ser mais um meio-termo entre a crença e a
descrença religiosa e o conhecimento e a ignorância por outro. A dúvida não
pode ser relativista, já que o relativismo, como todos os "ismos",
suprime a dúvida.
Quando Descartes exclamou que -
"Tudo deve ser sujeito à dúvida" -, pretendia usar essa afirmação
como um instrumento metodológico e epistemológico para chegar racionalmente à
verdade. Descartes pretendia nos livrar do que Montaigne chamou de "a
tirania das nossas crenças" e promover o que Montaigne descreveu como
"a liberdade do nosso julgamento".
É evidente que o método
socrático-cartesiano-baconiano abre as portas para um tipo fundamental de
dúvida cognitiva. "A dúvida", Kierkegaard argumentou, "é recusar
a aprovação. O curioso é que recuso minha aprovação a cada vez que algo
acontece".
Distinção entre a dúvida
sincera e o mero ceticismo: a dúvida é alheia a todos os "ismos"
e a seus verdadeiros crentes, bem como aos relativistas e aos céticos;
a dúvida sincera e coerente constitui a fonte de tolerância.
Pré-requisitos para o
posicionamento moderado entre o relativismo e o fundamentalismo
1. Uma diferenciação
entre a essência do posicionamento e seus componentes mais marginais (os
últimos foram chamados de adiáfora pelos teólogos)
2. Um abertura à
aplicação da erudição histórica moderna à própria tradição - isto é, o
reconhecimento do contexto histórico da tradição.
3. Uma rejeição do
relativismo para compensar a rejeição do fundamentalismo.
4. A aceitação da
dúvida como desempenhando um papel positivo na comunidade de uma crença em
particular.
5. Uma definição dos
"outros", aqueles que não compartilham a visão de mundo do indivíduo,
que não os categorize como inimigos (a menos, é claro, que eles
representem valores moralmente abomináveis).
6. O desenvolvimento e
a manutenção de instituições da sociedade civil que possibilitem um debate e a
resolução de conflitos de maneira pacífica.
7. A aceitação da
escolha, não apenas como um fato empírico, mas também como um fato moralmente
desejável.
6. Os
limites da dúvida
Há razões suficientes para
se duvidar da dúvida. Qual a intensidade? Uma das funções
primárias da dúvida é prorrogar a crítica. A dúvida se opõe particularmente à
crítica, ao julgamento e ao preconceito apressados. Isso ocasiona grande
risco.
Sociologicamente falando, a
dúvida tende a desgastar a certeza das instituições tradicionais. A certeza
institucional é, se eficaz, um "background" - pré-reflexivo, aceito
sem questionamento e tradicionalmente fundamentado - de uma sociedade.
A dúvida, especialmente a
dúvida sobre a dúvida, se transforma facilmente em desespero.
Com que bases alguém pode fazer
julgamentos morais com elevado grau de certeza? E como essa certeza pode ser
fundamentada em instituições sociais? O grande Rabino Hillel, sábio judeu da
Antiguidade, propôs que é possível anunciar todo o sentido da Torá por uma
pessoa que se equilibra em um pé só. Segundo ele, esse sentido é que não se
deve fazer a outrem o que é desprezível a si mesmo (na verdade, a primeira
formulação da Regra de Ouro). A isso, Hillel acrescentou: "O resto é só
comentário."
Essa funcionalidade pode ser
legitimada de quatro maneiras:
1. Mandamento divino
2. Lei Natural
3. Funcionalidade sociológica
4. Funcionalidade
biológica.
A antropologia filosófica, por
exemplo, levanta questões de como os seres humanos podem ser seres morais.
Os antropólogos filosóficos
tentam determinar quais são os componentes da condição humana.
Um componente fundamental é o
"imperativo institucional" - isto é, a necessidade que os seres
humanos têm de instituições (padrões tradicionais de ação, pensamento e
sentimento). Exemplo: para no sinal vermelho e seguir no sinal verde.
Um outro componente importante
é o fato de que os seres humanos são seres humanos falantes e comunicativos.
Aqui entra o conceito central da reciprocidade, ou seja, interações
entre os indivíduos, que possibilitam uma empatia entre as pessoas.
A distinção traçada por Max
Weber entre uma "ética de atitude" e uma "ética de
responsabilidade" é relevante para essa discussão. O primeiro tipo de
moralidade tem como critério básico a atitude baseada em princípios.
Uma "ética de
responsabilidade" se opõe à ética baseada em princípios: em vez de perguntar
"Que atitude o indivíduo deveria tomar?", ela pergunta "Quais
são as consequências prováveis das ações do indivíduo?"
Como um clima de dúvida
saudável pode ser mantido na sociedade? Naturalmente, a defesa da dúvida não é
a meta de todos. Os verdadeiros crentes (de qualquer crença e nacionalidade)
tendem a atacar a dúvida.
Um lugar de honra é concedido à
dúvida no direito consuetudinário anglo-saxão: uma pessoa é inocente até que se
prove o contrário — "além da dúvida razoável".
A dúvida, vulnerável pela
própria natureza, precisa da proteção de um Estado institucional, mas também
reside no coração do sistema democrático.
O maior elogio à dúvida é
quando ela própria é sujeita à dúvida enquanto as condições que a protegem são
atacadas.
7. A política da moderação
Aqueles que duvidam tendem a
hesitar, a deliberar. Já os verdadeiros crentes não precisam fazer nada além de
agir. Talvez acrescentem um direcionamento tático. Aqueles que duvidam
normalmente têm muitas outras ocupações - família, emprego, hobbies, vícios.
Foi isso que Oscar Wilde tinha em mente quando disse que o problema do
socialismo é que ele o priva de todas as suas noites livres.
A política de moderação precisa
superar a vantagem do fanatismo. Nesse caso, o humor geralmente desmascara
certezas e, ao mesmo tempo, protege os opositores dos fanáticos.
Dentre a profusão de piadas da
era soviética, destaquemos:
Como se diz quando há comida
nas cidades mas nenhuma comida no campo?
O desvio
esquerdista trotskista
Como se diz quando há comida no
campo mas nenhuma comida nas cidades?
O desvio
direitista bukarinista
Como se diz quando não há
comida nas cidades nem no campo?
A linha
correta do partido.
E como se diz quando há comida
nas cidades e no campo?
Os
horrores do capitalismo.
A dúvida não precisa levar à
paralisia. A moderação não precisa transformar-se em mais uma versão do
fundamentalismo. A política da moderação depende de equilíbrio entre uma
certeza essencial e muitas possibilidades de ação - e nenhuma delas tem a qualidade
da certeza.
A liberdade à qual todos os
seres humanos têm direito não é a "liberdade negativa" (não se
libertar do controle de um Estado opressivo), mas sim a "liberdade
positiva" de agir de maneira criativa em todas as esferas
da vida.
Como funciona a ética da
moderação? Há necessidade de haver um posicionamento moderado entre o
relativismo e o fundamentalismo, não apenas na religião e na moralidade, mas
também na política.
Os fundamentalistas sempre
tendem para a "ética dos fins absolutos". Os moderados políticos
tendem a uma ética da responsabilidade.
A política da moderação evita
tanto o relativismo quanto o fundamentalismo. No entanto, pode ser inspirada
por uma verdadeira paixão em defesa dos valores essenciais originados da
percepção da condição humana.
BERGER, Peter e ZIJDERVELD,
Anton. Em Favor da Dúvida: Como Ter Convicções sem se Tornar um
Fanático. Tradução de Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
Um comentário:
AJUDOU-ME BASTANTE. MUITO OBRIGADA.
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