28 agosto 2025

Princípios Elementares do Debate Racional em Filosofia

Argumentar é defender ideias com razões — e por isso o pior inimigo das sociedades fechadas.

Um bom ensino da lógica e da filosofia terá de ensinar a avaliar argumentos reais e a apresentar bons argumentos, distinguindo-os dos maus. No ensino correto da lógica e da filosofia aprende-se a discutir ideias, respeitando os seguintes princípios elementares do debate racional.

1. Respeitar e ouvir atentamente as pessoas que discordam de nós

Discordar racionalmente de alguém é diferente de tentar impedir a outra pessoa de exprimir as suas ideias, metralhando-a com um discurso repetitivo que nunca acaba. Tentar impedir as pessoas de quem discordamos de explicar as suas ideias é empobrecedor e uma atitude arrogante, pois pressupõe que só nós temos a Verdade e que as outras pessoas estão todas enganadas.

2. Estar disponível para mudar de ideias se os nossos argumentos não resistirem à discussão

Estar aberto à discussão não é a mesma coisa do que gostar da gritaria em que cada qual procura “brilhar” com as suas afirmações bombásticas e as suas referências eruditas. Uma discussão não é uma luta em que se procura deitar o parceiro ao chão; isso é uma gritaria. Numa discussão, o objetivo é descobrir a verdade, independentemente de saber quem está do lado da verdade.

3. Não mudar de assunto para assunto sem antes discutir adequadamente o que estava em discussão

Uma discussão de ideias não é uma forma de exibirmos a nossa erudição, referindo nomes de filósofos ou outros autores em catadupa, mudando de assunto para assunto e impedindo a análise serena de cada assunto. Usar a discussão de ideias para exibir credenciais intelectuais, sociais ou acadêmicas, mudando de assunto para assunto, é prostituir a discussão de ideias.

4. Distinguir o central e relevante do periférico e acessório

Em qualquer assunto há sempre imensas considerações e aspectos laterais, com diferentes importâncias relativas. Discutir proficientemente implica focar a atenção no que é central e relevante, abandonando o periférico e acessório. Por vezes, podemos estar enganados quanto ao que é relevante numa discussão, e o nosso interlocutor pode chamar-nos a atenção para isso. Devemos estar dispostos a corrigir a nossa avaliação do que é central, mas temos de resistir à tentação de fugir à discussão do que é central desviando a discussão para um aspecto acessório.

5. Não usar ataques pessoais de qualquer espécie

Se numa discussão se começa a atacar pessoalmente quem discorda de nós, a probabilidade de se poder continuar a discutir de forma razoável é mínima. As emoções fortes toldam a razão e se as pessoas responderem aos ataques pessoais, a discussão anterior perde-se e passa-se a discutir outra coisa.

6. Dominar (ainda que intuitivamente) os aspectos elementares da lógica informal

Evidentemente, as pessoas não têm de estudar lógica informal ou pensamento crítico antes de poderem discutir. Apesar de qualquer pessoa dever ler um bom livro introdutório à prática argumentativa, não devemos excluir uma pessoa de uma discussão só porque nada leu sobre como se discute de forma razoável.

7. Conhecer a bibliografia relevante

A discussão séria de qualquer assunto pressupõe que quem o está a discutir tem algum conhecimento da matéria em causa. Caso contrário, será melhor ficar calado e assistir à discussão de outras pessoas que têm conhecimento da bibliografia relevante; ou ir para casa estudar a bibliografia relevante.

8. Ter refletido de forma razoavelmente sistemática no tema em causa

Só devemos estar dispostos a debater publicamente um determinado tema se tivermos refletido de forma razoavelmente sistemática no tema em causa. Se avançamos para um debate unicamente porque temos uma ideia, faremos baixar a qualidade do debate. É preciso que, além de termos uma ideia, lhe tenhamos dado alguma reflexão; é preciso que nos tenhamos perguntado se teremos realmente razão e que argumentos há contra o que defendemos. Não podemos ter a ingenuidade de pensar que só porque uma ideia é nossa é maravilhosa.

Para distinguir a discussão racional da mera manipulação não precisamos, felizmente, de uma teoria da racionalidade — como todos os problemas centrais e fundamentais do conhecimento, saber claramente o que é a racionalidade é um problema em aberto. Uma discussão racional apela à inteligência do interlocutor e é frontal; a manipulação procura furtar-se à inteligência do interlocutor, procurando fazê-lo aceitar o que ele não aceitaria se lhe fosse dada oportunidade para refletir cuidadosamente.

Fonte de Consulta

MURCHO, Desidério. Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade (Capítulo 8 — "Filosofia, Lógica e Democracia") [Trechos copiados]


21 agosto 2025

Ciência e Filosofia: uma Comparação

A Ciência e a Filosofia são duas formas distintas de conhecer a realidade. Vejamos alguns tópicos.

Quanto ao objeto. A Ciência aborda a realidade estudando os fenômenos de forma separada e especializada. Como exemplo, temos a Química, a Física, a Biologia. Seria como fazer um corte da realidade.  A Filosofia procura ter visões de conjunto da realidade, relacionando as partes entre si. Busca a essência, a origem e os fundamentos dos diversos tipos de conhecimento.

Quanto às disciplinas. Há as disciplinas científicas e as disciplinas filosóficas. Em se tratando das disciplinas científicas, se o objeto é a Natureza, temos as Ciências Naturais; se o objeto é o Homem, temos as Ciências Humanas; se o objeto é a abstração, temos as Ciências Exatas. No caso da disciplinas filosóficas, se o objeto é Tudo, temos a Ontologia, a Metafisica; se o objeto é o Mundo, temos a Cosmologia; se o objeto é o Homem, temos a Antropologia; se o objeto é o Pensamento, temos a Lógica, a Gnosiologia, a Epistemologia.   

Quanto ao método. No conhecimento da Ciência, temos o método experimental, com a proposição de hipóteses, verificação e experimentação. Isola-se a realidade e submete-a a determinados testes, provas e comparações. Na Filosofia, os seus métodos são todos especulativos, ou seja, não envolve uma prática material direta com o objeto. Por exemplo, o método de Sócrates foi a maiêutica, “parto” das ideias; Platão, o diálogo ou Dialética; Aristóteles, a Lógica.

Quanto aos motivos e aos objetivos. Ambas respondem a certas necessidades e tendências do ser humano. Na Ciência, há uma pesquisa pura ou pesquisa aplicada. Como a Ciência, a Filosofia parte da curiosidade do ser humano diante da realidade e de si mesmo. Não é um querer saber, mas um admirar-se, espantar-se: onde as pessoas veem o objeto, o filósofo conjetura com o mistério, a dúvida e o secreto.  

Quanto à linguagem. O cientista usa linguagem descritiva, exata, e que não dê margem a ambiguidade e mal-entendido. Expõe os resultados de forma neutra e objetiva. A linguagem matemática é quase que obrigatória. O filosofo não deixa de usar uma linguagem exata, contudo recorre muitas vezes à linguagem metafórica, literária e poética. A verdade filosófica não é produto apenas da investigação do pensamento, mas também do modo como o pensamento é construído e exposto.

Fonte de Consulta

GOTO, Roberto Akira. Começos da Filosofia. Campinas, SP. Editora Átomo, 2000.

 

15 agosto 2025

Só Sei que Nada Sei

A frase “só sei que nada sei” é atribuída a Sócrates, mas não há registro dela. A origem encontra-se na declaração da sacerdotisa do templo de Delfos, onde diz que dentre os atenienses, Sócrates é o mais sábio. Este fica perplexo porque não tem teoria alguma, tal como Heráclito (c. 500 a.C.), Parmênides (c. 515-445 a.C.) ou os atomistas Leucipo (c. 450-420 a.C.) e Demócrito (c. 460-371 a.C.).

Para construir o seu conhecimento, Sócrates questiona as pessoas que julga serem mais sábias do que ele, e descobre a controvérsia: eles pensavam que sabiam o que não sabiam. Sócrates faz, então, a seguinte reflexão, depois de conversar com um deles: “Sou, sem dúvida, mais sábio que este homem. É muito possível que qualquer um de nós nada saiba de belo nem de bom; mas ele julga que sabe alguma coisa, embora não saiba, ao passo que eu nem sei nem julgo saber. Parece-me, pois, que sou algo mais sábio do que ele, na precisa medida em que não julgo saber aquilo que ignoro”. (Apologia, 21 d) É desta passagem da Apologia que nos chegou a expressão “só sei que nada sei”.

O sentido filosófico da frase refere-se à ignorância. “Só sei que nada sei” é uma espécie de tomada de consciência da ignorância. A reflexão sobre este assunto é útil, pois nos chama a atenção à humildade diante de qualquer conhecimento. Podemos saber muito, mas há muito mais a explorar. É isso que Sócrates procura nos advertir quando procura uma pessoa entendida num determinado ramo do saber. Depois de várias perguntas, o interlocutor acaba se contradizendo. Quer dizer, o interlocutor pensa que sabe, mas não sabe.

Um pouco de lógica. Em lógica formal, se você realmente não sabe nada, então não poderia ter certeza de absolutamente nada — nem mesmo de que não sabe. Mas aqui, “sei” não é literal no sentido absoluto; é usado para expressar um nível de consciência sobre a própria ignorância. Assim, o “paradoxo” é mais retórico do que uma contradição lógica insolúvel. Ele funciona como uma provocação filosófica. Para evitar o paradoxo, basta reformular a frase de forma que não haja contradição lógica entre “saber” e “não saber”. Em vez de "sei que nada sei", dizer: “Acredito que sei muito pouco.” “Tenho consciência de que meu conhecimento é limitado.” “Sei que o que sei é pouco diante do que há para saber.”

A manutenção do paradoxo é muito útil. O “choque” lógico obriga a pensar: se a pessoa “sabe” que “não sabe”, então há um tipo de saber que nasce da consciência da ignorância. Esse é o paradoxo fértil: o conhecimento começa quando reconhecemos o que não sabemos. No fundo, o paradoxo só existe porque a frase, tomada literalmente, se autonega. Quando deixamos claro que se trata de limitação, não de ausência total de saber, ele desaparece.

Tenhamos sempre em mente a nossa limitação. Reconheçamos, com Sócrates, que a humildade intelectual e o reconhecimento da própria ignorância são os alicerces, os fundamentos para alcançar a verdadeira sabedoria.

14 agosto 2025

Falibilidade: Controle e Ajuste

Somos seres falíveis. Por mais cuidado que tenhamos, mesmo assim, o engano ocorrerá. O provérbio “aprender com os erros” tem grande significância. Quer dizer, pouco adianta ter certezas, porque a convicção profunda de que não nos enganamos é fictícia, ilusória. O melhor, para cada um de nós, é deixar sempre a mente aberta à dúvida metódica, como nos ensinou Descartes. 

Uma boa maneira de diminuir os nossos erros é procurar recorrer a outras pessoas, que são também falíveis. Se um terceiro refuta a nossa ideia, livramo-nos desse erro. Anotemos, também, que a verdade ou a falsidade das nossas convicções não depende de nós, mas antes da realidade — que é o objeto das nossas convicções. O que depende de nós é a justificação cuidadosa de nossas convicções.

Controles e ajustes. Comparando nossas convicções com a de outras pessoas — cientistas, religiosos e filósofos —, podemos aumentar os nossos controles e ajustes, que nada mais são do que raciocínio. Nesse sentido, precisamos raciocinar para concluir, com base na observação ou na experimentação, se os nossos pensamentos estão de posse da verdade ou do erro. 

Para que o nosso saber seja robusto e correto, evitemos a tentação que, ao longo dos séculos, tem sido fingir que podemos abandonar o raciocínio paciente envolvidos  nos controles e ajustes permanentes, substituindo por Deus, pela autoridade ou pela observação ou experimentação. O problema está dentro de nós. O terceiro pode nos auxiliar, mas a decisão sobre o teor da verdade é apropriada a cada um. 

Quando o raciocínio visa persuadir outras pessoas — chama-se argumentoO argumento  visa persuadir o nosso interlocutor a aceitar uma conclusão que ele originalmente não aceita. Se partirmos da premissa que ele aceita, o argumento é inútil. Argumentar com o interlocutor é mostrar que as suas ideias implicam outras ideias que ele quer rejeitar.

 

 

No Meio é que Está a Virtude

A ética, na maioria das vezes, mostra-nos proibições e regras, em que se estabelecem limites e padrões de comportamento, seja no âmbito profissional, social ou pessoal. Elas ajudam a definir o que é aceitável e o que não é. Do ponto de vista de Aristóteles, a ética não é um sistema de proibições e regras que nos dificultam a vida; pelo contrário, é o que nos permite ter uma vida boa.

Em sua ética, Aristóteles tratou do Bem Último, que se fundamenta naquilo valorizamos — por si mesmo ou por qualquer outra coisa. Observa o dinheiro: só irrefletidamente poderá ser valorizado por si; uma pessoa refletida valorizará o dinheiro apenas instrumentalmente, porque permite obter outras coisas que valorizamos. A felicidade é algo que não valorizamos instrumentalmente e que, se a tivermos, nada nos falta; Aristóteles conclui que a felicidade é o bem último que procurávamos. 

O guia educativo de Aristóteles está centrado na doutrina do “justo meio” (mesótes), segundo a qual a virtude está no equilíbrio entre dois extremos: o excesso e a falta. A coragem, por exemplo, poderia ser vista da seguinte forma: no excesso, temos a imprudência; na falta, a covardia. Vejamos outros exemplos: Temperança [Falta = Insensibilidade; Excesso = Intemperança]; Generosidade [Falta = Mesquinhez; Excesso = Prodigalidade]; Mansidão [Falta = Apatia; Excesso = Ira excessiva]; Amizade [Falta = Frieza; Excesso = Adulação]; Orgulho [Falta = Humildade servil; Excesso = Arrogância].

É um erro atribuir a Aristóteles de que no meio é que está a virtude. Aristóteles não pensa nem que em todos os casos há um meio, nem que a sua teoria tenha por missão estabelecer esse meio. Eis o que defende Aristóteles: “A virtude é um estado que envolve escolha racional, consistindo num meio-termo relativo a nós e determinado pela razão […]” (Ética Nicomaqueia, 1106b-1107a) Como vemos, a virtude consiste num meio-termo relativo a nós, o qual é determinado pela razão. Eis o cerne da questão.

A ideia de usar "meio-termo" em vez de apenas "meio" tem sentido em português moderno, porque “meio-termo” já é uma expressão consagrada para indicar moderação ou equilíbrio. Vejamos duas frases adaptadas do assunto: 1) "A virtude está no equilíbrio." — simplifica e transmite a ideia central; 2) "A virtude está no meio-termo." — preserva a imagem dos extremos e o sentido prático.

Em síntese, viver virtuosamente, segundo Aristóteles, seria evitar os extremos e buscar o ponto de equilíbrio apropriado a cada situação, de acordo com a razão.

Fonte de Consulta

MURCHO, Desidério. Sete Ideias Filosóficas: Que Toda a Gente Deveria Conhecer. Editorial Bizâncio, 2011.