
A peça "Boubouroche" (1893) de Georges Courteline, reportada
no livro O Real e seu Duplo, de Rosset, é um exemplo da cegueira do
real, da ilusão.
Resumo da peça: Boubouroche instalou a sua amante, Adèle, em um pequeno apartamento.
Um vizinho de andar de Adèle previne caridosamente da traição quotidiana de que
é vítima este último: Adèle partilha o seu apartamento com um jovem namorado
que se esconde num armário toda vez que Boubouroche visita sua amante. Louco de
raiva Boubouroche irrompe numa hora inabitual e descobre o amante no armário.
Cólera de Boubouroche, à qual Adèle responde com um silêncio desgostoso e
indignado: "Você é tão vulgar", declara ao seu protetor, "que
não merece nem a mais simples explicação que logo teria dado a outro, se ele
tivesse sido menos grosseiro. É melhor nos separarmos". Boubouroche admite
os seus erros e perdoa Adèle. Moral da história: Boubouroche, mesmo desfrutando
de uma visão correta dos acontecimentos, mesmo tendo surpreendido o seu rival
no esconderijo, continua a acreditar na inocência da sua amante.
Reflexão de Rosset:
Imaginemo-nos apressados num volante, quando surge o sinal vermelho. Ao
esperarmos o sinal verde, estamos aceitando o real. Por outro
lado, podemos ignorar o sinal vermelho e continuarmos o nosso caminho. Este ato
assemelha-se ao Édipo furando os próprios olhos. Isso também pode causar dano à
nossa consciência, levando-nos ao suicídio. Há, ainda, um outro modo de atuar:
percebemos que o sinal está vermelho, mas concluímos que é a nossa
vez de passar.
O raciocínio que tranquiliza pode ser expresso da seguinte forma:
"Há um rapaz no armário — logo Adèle é inocente, e eu não sou
cornudo". Esta é, na verdade, a estrutura fundamental da ilusão: uma arte
de perceber com exatidão, mas de ignorar a consequência.
A técnica geral da ilusão é transformar uma coisa em duas, exatamente
como a técnica do ilusionista, que conta com o mesmo efeito de deslocamento e
da duplicação da parte do espectador: enquanto ocupa com a coisa, dirige o seu
olhar para outro lugar, para lá onde nada acontece. Como Adèle para
Boubouroche: "É bem verdade que há um homem no armário — mas olhe
para o lado, ali, como amo você".
Diz-nos que aceitamos o real, mas quando o nível de
tolerância é suspenso, já não o queremos mais ver. Daí partirmos
para uma recusa do real.
ROSSET, Clément. O Real e seu Duplo: Ensaio sobre a Ilusão.
Tradução de José Thomaz Brum. Porto Alegre, RS: L&PM, 1976.
Nenhum comentário:
Postar um comentário