02 novembro 2025

O Advento do Cristianismo (Algumas Notas)

1 — O Cristianismo e a Concepção Grega do Mundo. 2 — Gnosticismo e Neoplatonismo. 3 — A Patrística. 4 — A Mentalidade Romana: O Direito e o Ecletismo. 5 — Santo Agostinho. 6 — Bibliografia Consultada.

1 — O Cristianismo e a Concepção Grega do Mundo

A civilização ocidental é o resultado de uma dupla herança constituída, por um lado, pelo pensamento grego e, por outro, pelo cristianismo. É importante compreender a dimensão que o advento do cristianismo assumiu, perceber que nosso pensamento não seria o mesmo sem essa herança, e que a civilização europeia se debateu e ainda se debate nos limites estabelecidos por essa religião — mesmo quando, já na modernidade, o tema da morte de Deus se tornou recorrente.

A relação do cristianismo com a cultura grega clássica inclui várias facetas: desde a oposição, devido à sua natureza diferente — uma verdade revelada perante uma verdade racional —, até sua aliança diante da necessidade de repensar a realidade no contexto do pensamento cristão, sem esquecer as diferenças nunca superadas em sua concepção de mundo ou da divindade.

Fé e razão

Religião e filosofia são duas formas diferentes, se não opostas, de se propor a compreensão do mundo. O cristianismo é uma religião e, como tal, é um conjunto de crenças reveladas que aceitamos por fé, por motivos extra-racionais. A filosofia, ao contrário, tenta uma compreensão da realidade dentro dos limites da razão. As ideias aceitas não são crenças, são pensamentos argumentados, raciocinados; quer dizer, ideias para as quais podemos dar razões. Os âmbitos de cada uma delas, fé e razão, também são diferentes: o da fé é o sobrenatural; o da razão, o natural.

Mas, embora de natureza diferente, razão e fé mantêm, desde os inícios do cristianismo, uma profunda ligação, ainda que com muitas tensões. Desde o primeiro momento, uma minoria de cristãos cultos tentou não apenas crer, o que já faziam na condição de cristãos, mas também compreender o que tinha sido revelado pela fé. 

Imagem de Deus

O cristianismo, como se sabe, baseia-se na interpretação dos textos canônicos do Antigo e do Novo Testamento: a Bíblia. Incorpora, portanto, elementos centrais de uma tradição religiosa, a do judaísmo, criada ao longo de dois milênios (desde 1850 a.C., aproximadamente). O resultado pressupõe uma concepção de mundo distanciada da grega em aspectos fundamentais. 

A cultura grega é uma cultura politeísta — a crença em múltiplos deuses; o cristianismo, pelo contrário — e a herança judaica se faz novamente notar — é monoteísta — a crença em um único deus. É verdade que na filosofia grega existem certas tendências monoteístas, como por exemplo nas concepções de Platão e Aristóteles, mas elas convivem com o politeísmo. 

A imagem de Deus no cristianismo é a de um único Deus, criador, onipotente, transcendente (está fora do mundo); um deus concebido como possuidor de qualidades que expressam sua perfeição absoluta. Por sua perfeição e transcendência, o divino forma uma realidade totalmente distinta da da criatura, e infinitamente superior. Os antropomórficos deuses gregos não aspiravam a nada semelhante: eles fazem parte do mundo, não estão fora dele, e embora constituam uma raça que desconhece as imperfeições que caracterizam as criaturas mortais — fraqueza, cansaço, sofrimento, doença, morte —, não encarnam o absoluto nem o infinito. 

Uma nova experiência do tempo

Talvez a novidade mais importante seja a de uma nova experiência do tempo, que tem, por sua vez, implicações na concepção sobre a origem da realidade e na concepção da história. Para os gregos, o tempo é circular, o que supõe, entre outras coisas, a eternidade do que existe e a negação da criação do mundo. O cristianismo, por meio da herança do Antigo Testamento, apresenta uma concepção linear do tempo, uma concepção que até hoje é a nossa. 

Deus, ser onipotente, criou o mundo, e o criou a partir do nada, ex nihilo. Esse princípio fundamental é profundamente alheio à maneira grega de pensar a origem do nosso mundo. Para o pensamento grego, do nada, nada sai. Esse é um princípio racional inquestionável. O mundo é um cosmos, um universo imutável e ordenado, de movimento regular, no qual tudo se repete eternamente — concepção do eterno retorno. Os dias e as estações do ano passam, mas depois voltam; a primavera sucede ao inverno; o que morre torna a nascer. Platão defende que o tempo, determinado pela rotação das esferas celestes, é circular porque apenas imita a eternidade imóvel. O movimento e o devir são níveis inferiores de uma realidade que no fundo é permanente. O ser autêntico é eterno e imutável. 

No cristianismo, pelo contrário, não existe o cosmos, como estrutura eterna e imutável. O que é é porque está no tempo. Deus cria o mundo e com ele o tempo. A natureza da coisa criada é a de ser puro devir e contingência, cada acontecimento é único, nada se repete, o que faz do tempo história no sentido estrito da palavra: um processo linear, aberto; com um princípio (a criação), um final (o advento do reino de Deus) e um acontecimento singular que lhe dá seu sentido pleno: a encarnação do filho de Deus. (Temática Barsa, 2005)

2 — Gnosticismo e Neoplatonismo

Nos primeiros séculos de nossa era, coincidindo com o apogeu e declínio do Império Romano, o pensamento filosófico tenta solucionar, seja dentro ou fora do cristianismo, o problema do Bem e do Mal, que se polariza na antítese Deus e Mundo e que divide a consciência do ser humano em opostos inconciliáveis. 

O Mal, que se identifica com a matéria de que o mundo é formado, provém da experiência da dor, da doença e da morte. Não se trata, portanto, de uma categoria exclusivamente moral, mas de um mal metafísico, próprio da condição finita e contingente do ser humano, e do qual derivam os outros males. Frente a esse problema, alinham-se duas correntes de pensamento. Uma está ligada à tradição das religiões orientais, aos mistérios órficos-pitagóricos e a conhecimento hermético: é o agnosticismo. A outra reformula o pensamento de Platão com o objetivo de salvar esse profundo dualismo aberto no espírito humano: é o neoplatonismo.

O Gnosticismo

O nome dessa corrente de pensamento, que surgiu a partir do século II de nossa era, deriva do grego gnosis, que significa "conhecimento". Não se trata, porém, de um conhecimento conceitual, mas antes de um saber absoluto adquirido pela via de uma iluminação intuitiva, reservada unicamente a alguns iniciados. 

O gnosticismo seria apenas mais uma heresia entre tantas que o cristianismo precisou enfrentar em seus primeiros tempos, se não se tivesse conectado com uma força única ao universo inconsciente e arquétipo do homem. Esse universo não se expressa por meio de conceitos, mas de imagens simbólicas. A arte e a poesia sempre se alimentam delas, assim como todas as tradições esotéricas.

Do ponto de vista filosófico, o que importa destacar é a dualidade com que se confronta a consciência dessa época. A unidade grega entre o cosmos e Deus se rompeu, e o Bem e o Mal se polarizaram em opostos inconciliáveis. De um lado, Deus, o Bem supremo; do ouro, o Mundo que abriga a matéria, fonte de todo o Mal. E, no meio dessa dualidade, o Homem. Todo o esforço dos gnósticos está voltado para preencher esse abismo que separa o homem de Deus. A gnose é justamente o conhecimento capaz de iluminar o caminho que leva à união desses dois extremos separados pela matéria. 

Uma vez que Deus, o Bem supremo, não poderia ter criado o mundo em que existe o Mal, os gnósticos tratam de encontrar um princípio supremo diferente de Deus que dê conta da imperfeição e do mal que existem no mundo. 

Basílides, um gnóstico que pregou em Alexandria entre os anos 120-140, oferece uma resposta a esse extremo dualismo estabelecendo os princípios da luz, causa do Bem, e das trevas, origem do Mal. As trevas não foram absorvidas pela luz, mas de seu contato nasceu uma luz aparente que é a do mundo, mistura do bem e do mal. Para Valentino, outro gnóstico do século II, o mundo é a consequência de um esforço incompleto, porque não é obra de Deus — o princípio supremo ou Pleroma —, mas de algumas das emanações produzidas pela divindade e que presidiram as sucessivas transformações do Universo.

A doutrina das emanações: Plotino

emanação é um dos conceitos-chave do começo da era cristã. Além dos gnósticos, que também o emprega é Plotino (205-270), um pensador cuja obra, As Enéadas, figura como a expressão mais elevada do neoplatonismo. Uma flor emana perfume, um corpo luminoso emana luz. A emanação é, portanto, um processo pelo qual uma coisa é causada por outra, que a determina ou a contém como princípio. Plotino explica assim a criação do mundo, por meio de uma série de emanações de um princípio supremo, o Um ou Deus, que exclui qualquer multiplicidade.

O Mundo se divide em Mundo inteligível e Mundo corpóreo. O primeiro é formado pelo Um. Do Um emana o intelecto (nous) e, numa segunda emanação, do intelecto emana a alma do mundo (anima mundi). O intelecto (que equivale ao Demiurgo platônico), ao ser pensamento, apresenta uma cisão entre sujeito e objeto; abriga, portanto, o germe da multiplicidade. Mas essa se encontra plenamente desenvolvida na mundo corpóreo formado pela matéria. O Mal (ou seja, a privação de ser que origina o devir) reside aí.

No entanto, a anima mundi intervém também no mundo corpóreo como princípio de unidade e indivisibilidade. A existência do homem, portanto, é um corpo de batalha entre esse princípio unitário, que tende para o Bem (a união com o Um) e a multiplicidade da matéria, que encaminha para o Mal (privação de ser). Retomando às teses sobre o amor que Platão havia formulado no Fedro, Plotino aponta um caminho interior, um retorno à mesmice, como via de ascensão da multiplicidade presente na matéria à unidade que Deus encarna. É um caminho de êxtases místicos que conduzem à fusão com o Um e que só é concedido aos eleitos.

Essa experiência interior, entretanto, na qual se abandonam a percepção sensível e o pensamento discursivo, aparecerá com muito mais força em Santo Agostinho.

A tradição oculta

No início da era cristã, o aparecimento do gnosticismo é o resultado de um encontro entre a alma oriental e a alma ocidental. Depois, essa se separará para seguir o seu próprio curso, revestida pelo cristianismo e pelo pensamento racional (herança grega). No entanto, no decorrer da história, nem todo o pensamento perambulou na Europa pelas sendas do cristianismo e do racionalismo. Existe também uma tradição oculta cujo ponto de partida deve se fixar justamente na gnose dos séculos II-III de nossa era. Nesta tradição confluem, num primeiro momento, as doutrinas enigmáticas do Orfismo (de Orfeu, poeta mítico do século VI a.C.), com sua crença nas transmigrações sucessivas das almas. Ou na corrente esotérica do hermetismo (do deus Hermes Trismegisto, que, por sua vez, provém de Tot, divindade lunar entre os egípcios), que está relacionada com a astrologia e a alquimia.

Trata-se de formas ocultas, esotéricas, com um fundo que historicamente bebeu das religiões orientais. No Ocidente, essas formas reaparecem ao longo da Idade Média, e inclusive da Idade Moderna, incluídas no Corpus hermeticus dos alquimistas. Estão presentes ainda no Renascimento, na medicina astrológica de Paracelso e podem ser rastreadas em grandes obras literárias, como no Fausto, de Goethe. Já em nossa época, aparecem nos domínios da teosofia, ou foram objeto de uma profunda exploração por parte da psicologia analítica de C. G. Jung. Nessa tradição oculta, de raiz mística, busca-se sempre o encontro com Deus, com o Um, de forma íntima - seja na solidão das retortas alquímicas, onde se opera a transmutação dos metais, seja no contato com uma seita ou grupo do qual se é adepto ou iniciado. (Temática Barsa, 2005)

3 — A Patrística

Um dos fatos de maior transcendência ocorrido na história do pensamento ocidental é a adoção que o cristianismo faz da filosofia grega, durante os primeiros séculos de nossa era. Nossa cultura ocidental não poderia ser entendida sem essa síntese laboriosa que os padres da igreja realizaram ao longo de setecentos anos. O resultado dessa obra, quer dizer, a elaboração doutrinal que estabelece uma continuidade com o mundo antigo pela via da razão e com o mundo cristão pela via da revelação é conhecida pelo nome de patrística

A helenização do cristianismo

Historicamente, o cristianismo, desde o seu aparecimento na Palestina, expandiu-se de forma gradual pelo Mediterrâneo. Foi constatado que a queda de Jerusalém nas mãos dos romanos (ano 70) deu maior peso àquelas regiões da Grécia e da Anatólia que haviam sido evangelizadas por São Paulo. Mas esses fatos, apesar de importantes, não explicam totalmente a envergadura do processo de helenização experimentado pelo cristianismo desde suas origens.

A passagem sucessiva de Jerusalém a Atenas, e depois Roma como centros de expansão cristã é fomentado, desde logo, por uma série de vicissitudes históricas, mas dá conta, também, de uma espiritualização cada vez maior dos conteúdos cristãos. Pouco a pouco, vão-se abandonando as concepções apocalípticas, mais típicas do judaísmo, que viam a salvação como algo imediato, e passa-se a interpretá-la como uma forma de salvação espiritual. Não se espera, portanto, uma redenção imediata do sofrimento e da morte, existe, em lugar disso, uma necessidade de aprofundar os conteúdos da verdade revelada, para manter viva aquela esperança originária da salvação. 

É quando aparece no cristianismo, a necessidade de adotar os instrumentos conceituais forjados na cultura grega, e assim tem início aquela elaboração doutrinal dos padres da igreja conhecida como "patrística".

Tertuliano e Orígenes

Há nesta época (séculos I-III) dois pensadores cristãos de grande relevo que, com sua obra, já indicam as possibilidades resultantes de uma síntese entre cristianismo e filosofia. 

Nascido por volta de 155 em Cartago, Tertuliano é o expoente de um cristianismo baseado na fé, no fundo racional da alma, isto é, no puro sentimento, e que, justamente por isso, quer prescindir da filosofia. Expressa, portanto, uma tendência contrária à da patrística, e será posto à margem pela igreja, apesar de haver criado o latim eclesiástico e haver combatido o gnosticismo. 

A atitude de Tertuliano, contudo, é precursora de um cristianismo místico e vivencial que encontrará sua máxima expressão na síntese agostiniana de razão e fé. 

Um caso diferente é o de Orígenes, que nasceu por volta do ano 185 em Alexandria. Autor de uma vasta obra composta de escólios, homílias e comentários, Orígenes é o primeiro grande sistematizador da teologia cristã e, por isso mesmo, o primeiro criador de um sistema filosófico cristão, ao qual incorpora elementos neoplatônicos e até gnósticos. É ele quem define a orientação filosófica que os padres da igreja vão seguir, e sua influência chega até a escolástica medieval, embora com muitas tensões. 

No século VI, os partidários desse pensador, que alimentam a corrente do origenismo, serão condenados pela igreja ao defenderem a crença na eternidade do mundo e na doutrina da preexistência da alma. 

A patrística

Com esses precedentes (progressiva helenização do cristianismo e os primeiros esforços para conciliá-lo com a filosofia), a patrística surge a partir do século II, com são Justino. Como doutrina dos padres da Igreja, procurou unir o pensamento grego (especialmente o platônico e o neoplatônico) às Sagradas Escrituras. Ao mesmo tempo, a patrística é uma doutrina que se forja na luta contra o paganismo e na depuração teorética exigida pelo esforço de diferenciar-se de heresias como o gnosticismo, o arianismo, o maniqueísmo, o monofisismo.

As questões que mais preocupam os padres da igreja são as mais importantes levantadas pelo dogma. A criação, a revelação de Deus com o mundo, o mal, a alma, o destino da existência e o sentido da redenção são problemas fundamentais da patrística. E também questões estritamente teológicas, como as que se referem à essência de Deus, à trindade das pessoas divinas etc. Por último, problemas morais que vão conduzir ao estabelecimento de uma nova ética que, embora utiliza conceitos helênicos, se fundamenta, na graça e na relação do homem com seu criador, e culmina na ideia da salvação, estranha ao pensamento grego.

A patrística chega ao seu auge com o pensamento agostiniano. Clemente de Alexandria, são Gregório Nazianzeno, são Basílio, são João Crisóstomo e são Jerônimo trouxeram contribuições da máxima importância a essa corrente de pensamento que perdurará (ainda que com menor força após a morte de santo Agostinho) até o século VIII.

O pensamento de Tertuliano

Para Tertuliano, Atenas e Jerusalém nada têm em comum: fé em Cristo e Sabedoria humana se contradizem (daqui sua célebre afirmação: credo quia absurdum). Na verdade, a alma é naturaliter christiana e é a cultura filosófica que a afasta da verdade. Tertuliano assumiu, talvez de Sêneca, uma concepção corpórea da realidade e do próprio Deus.

Tertuliano contrapõe os filósofos aos cristãos do seguinte modo: "Em seu conjunto, que semelhança pode-se perceber entre o filósofo e o cristão, entre o discípulo da Grécia e o candidato ao céu, entre o traficante de fama terrena e aquele que faz questão de vida, entre o vendedor de palavras e o realizador de obras, entre quem constrói sobre a rocha e quem destrói, entre quem altera e quem tutela a verdade, entre o ladrão e o guardião da verdade?"

Platonismo e cristianismo

O platonismo é o sistema que proporciona ao cristianismo o esquema conceitual básico. De um lado, a corrente platônica — definitivamente impulsionada pelo neoplatonismo — era na época a mais vigorosa e dominante; além disso, era a que oferecia mais pontos de contato com a doutrina cristão.

Os aspectos da concepção platônica que ofereciam mais possibilidades para a formulação das ideias cristãs são os seguintes. Em primeiro lugar, a existência de dois mundos, um sensível e imperfeito e outro inteligível e perfeito. O cristianismo situa as ideias na mente de Deus: o mundo perfeito é o divino. Da mesma forma como para o platonismo o mundo sensível foi feito à imagem e semelhança das ideias, para o cristianismo a criação leva também a marca das ideias do Criador. Mas, apesar dessa presença de Deus na criação, os filósofos cristãos não deixam de sublinhar a contingência da coisa criada (a coisa criada é, mas pode não ser: não possui o ser por si mesmo, mas o recebe de Deus) e, com a contingência, a dependência de seu ser em relação ao Criador. Por outro lado, os cristãos acreditaram encontrar a própria ideia de criação prefigurada no Demiurgo platônico. Por último, tanto Platão quanto o neoplatonismo, ao situarem a ideia do Bem no topo da hierarquia, abriram grandes possibilidades ao cristianismo para expressar o monoteísmo. (Temática Barsa, 2005)

4 — A Mentalidade Romana: O Direito e o Ecletismo

As contribuições dos romanos à história do pensamento ocidental são bem mais escassas, se as considerarmos de um ponto de vista teorético. Roma, nesse sentido, deve ser vista como uma transmissora do pensamento grego, e sua máxima contribuição consiste na adaptação das ideias gregas ao mundo latino. 

Nesse papel de transmissão e adaptação, os romanos são ecléticos. O ecletismo, cujo representante mais ilustre é Cícero, é apenas uma seleção de verdades correspondentes a diferentes sistemas filosóficos, tendo como critério o senso comum. 

Não é nesse aspecto que se deve procurar a originalidade das contribuições romanas. Estas se encontram no desenvolvimento peculiar do estoicismo de Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio e, especialmente, no direito romano.

O ecletismo: Cícero

A figura de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) é fundamental para se compreender o jogo mental característico dos romanos. Nessa mentalidade, o interesse se concentra nas conclusões, mais do que nas premissas, e nas soluções práticas dos problemas, mais do que em sua elucubração puramente teorética e abstrata.

A pedra angular do pensamento ciceroniano se baseia no consensus gentium, que dizer, em um consenso da maioria para aquelas questões metafísicas que suscitam sérias dúvidas. Se não existe esse consenso, é prudente abster-se (quer dizer, limitar deliberadamente o voo do pensamento; o homem romano é prático e o que importa de forma prioritária é a ação)

O que dizem — pergunta-se Cícero em sua obra Sobre a natureza dos deuses — epicuristas e estoicos sobre a existência de Deus e a imortalidade da alma? Que as duas coisas são indubitavelmente certas. E o comum dos mortais, o que pensa a respeito? A mesma coisa. Logo, é correto. E sobre a natureza da divindade, o que sabemos? Nisto existe discrepância em saber "se os deuses estão completamente ociosos e inativos, sem tomar parte alguma na direção e nos governo do mundo, ou se, pelo contrário, todas as coisas foram criadas e ordenadas por eles em um começo, e são controladas e conservadas em movimento por eles ao longo de toda a eternidade". Assim, não podemos julgar nesse terreno.

A linguagem filosófica

A contribuição mais importante de Cícero e da maioria dos pensadores romanos é a criação de uma linguagem filosófica que constitui uma adaptação dos termos filosóficos usados pelos gregos. Essa "versão romana" da filosofia grega assumiu  tamanha importância que, durante muitos séculos (praticamente até o renascimento e mesmo depois), o pensamento do Ocidente a usou como fonte direta (o que suscitará, na época contemporânea, a crítica de Heidegger, por entender que com isso se perdeu o substrato original da experiência grega).

O estoicismo romano

Dentro do ecletismo geral da época, a filosofia estoica teve um especial destaque em Roma. Os nomes de Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio, o imperador filosófico, estão associados a uma forma de estoicismo de caráter ético que revaloriza mais uma vez o ideal do sábio.

O cordovês Lúcio Aneu Sêneca (3-65), por exemplo, propõe a figura do sábio como homem forte, imune às variações da sorte e que luta mesmo quando foi derrubado: um código ético para as classes dirigentes do Império Romano, formulado por um filósofo que durante o mandato de Nero assumiu as mais altas responsabilidades políticas e acabou por suicidar-se.

O espiritualismo de Sêneca, no entanto, com seu canto à virtude e seu desprezo pelas vaidades terrenas, teve uma profunda influência sobre o catolicismo espanhol, a ponto de um historiador, Américo Castro, defender que suas raízes têm parentesco direto com a idiossincrasia espanhola. 

O epicurismo

A tradição materialista de Epicuro é recolhida em Roma por Lucrécio (94-55 a.C.), autor de uma vasto poema, Sobre a natureza das coisas (De rerum natura), em que procura dar uma explicação científica para os enigmas do Universo. Pensador isolado, que na época da revolução científica (século XVII) será revalorizado por seu caráter precursor, Lucrécio defende que a alma é material e o Universo nem é criado nem destruído, já que sua matéria é infinita. É notável também sua teoria do conhecimento, que se baseia nas sensações, assim como sua afirmação de que a religião é contrária à ciência.

O direito romano

Aquilo que importa na mentalidade romana é, antes de mais nada, a organização da vida social mediante regras e preceitos. No início, essas regras jurídicas se confundem com as próprias tradições religiosas dos romanos. Depois (e trata-se de uma evolução que abarca mais de mil anos, já que se inicia com a fundação de Roma, no século VIII a.C. e termina nos séculos V-VI de nossa era), os plebeus conseguem que os princípios jurídicos fundamentais recolhidos na lei das Doze Tábuas sejam declarados publicamente. Isto estabelece um grande passo para a igualdade política. É nessa época que aparecem os juristas e se abre um processo de secularização do direito (quer dizer, uma emancipação do direito em relação aos preceitos puramente religiosos). Nessa etapa a figura fundamental é a do pater familias.

A expansão de Roma para além dos confins da península Itálica e o contato com a cultura grega ampliam os horizontes de um direito ainda comprimido nos limites de uma estrutura social determinada pela existência de pequenos proprietários rurais. Em primeiro lugar, assegura-se um direito baseado no costume: é o fundamento do direito civil (jus civile);  depois, estabelecem-se as bases de um direito internacional com o jus gentium, o direito dos povos, que se aplica aos cidadãos. Um novo passo nessa evolução diferenciadora das normas ocorre quando o direito civil e o direito dos povos se reúnem no âmbito do jus publicum (direito público que se refere às relações com o estado) e se distinguem do direito privado (jus privatum).

A história jurídica de Roma termina no século VI, quando o imperador de Bizâncio, Justiniano I, compila as leis romanas no Corpus juris civiles. Então começa outra história: a da aplicação do direito romano a todos os povos romanizados da Europa. (Temática Barsa, 2005)

5 — Santo Agostinho

"Dai-me castidade e continência, mas não agora." Confissões

A iluminação agostiniana

De acordo com a exigência socrático-platônica, santo Agostinho busca a verdade necessária, imutável e eterna, que não pode ser facilitada pelos objetos sensíveis, que sempre estão mudando, e aparecem e desaparecem. Também a alma é contingente e mutável. Somente Deus é a verdade. 

Encontra-se Deus no interior da alma. Nela se realiza a descoberta de "verdades, regras ou razões eternas" que nos permitem deliberar sobre as coisas sensíveis. Mas, como essas verdades não podem nascer da alma, que é mutável, só podem se explicar por iluminação divina. Como saberíamos, não fosse a iluminação divina, o que é justo e o que é injusto? Se o sabemos é porque daquela verdade se "copia" toda lei justa. (Temática Barsa, 2005)

Dados biográficos de Santo Agostinho

Agostinho (354-430 d.C.) nasceu em Tagaste, norte da África, quando o Império Romano estava sendo destruído pelas invasões bárbaras. Seu Pai, Patrício, era pagão; sua mãe, Mônica, posteriormente Santa Mônica, era cristã. Aos 16 anos, foi estudar direito em Cartago, mas em 375 começou a se dedicar à filosofia, como resultado da leitura de Hortêncio, de Cícero. Converteu-se ao Maniqueísmo e tornou-se professor de retórica em Roma, em 383. De Roma, foi para Milão, onde se viu tomado pelo carisma do bispo cristão Ambrósio. Por algum tempo, atraiu-o o neoplatonismo, mas depois de longa e dolorosa luta tornou-se cristão em 386, recebendo o batismo de Ambrósio na Páscoa de 387. Sua intenção era levar uma vida “monástica”, mas em 391 foi ordenado, contra a sua vontade, bispo de Hipona (hoje Annaba, na Argélia). Foi bispo durante trinta e quatro anos, tempo em que escreveu copiosamente, combateu heresias e viveu em comunidade com outros cristãos. Aos 76 anos de idade, foi morto Hipona, durante cerco da cidade pelos vândalos. (Raeper, 1997, p. 25)

As duas principais obras deixadas por Santo Agostinho

Confissões

As Confissões de Santo Agostinho, iniciada em 391 e concluída em 400, é uma obra fascinante. São treze livros, dos quais 9 auto-biografados e 4 teologais. Nela se apresenta como o Filho Pródigo e a Ovelha Perdida do Evangelho de Lucas – perdido e depois encontrado, tal como o apóstolo Paulo. 

Procura mostrar pelo seu exemplo o que pode a graça para os mais desesperados dos pecadores. Com admirável franqueza e contrição confessa os desregramentos de sua mocidade (teve inclusive um filho bastardo, Adeodato), sempre atribuindo a si mesmo as tendências perversas e a Deus os progressos de seu espírito para o bem.  Foi um homem em permanente batalha contra as suas próprias emoções e fraquezas.

Discute também questões acerca do tempo e a presença do mal no mundo.

Cidade de Deus

Os principais temas são: a vontade humana, as relações entre teologia e razão e divisão da história entre as duas cidades – dos homens e de Deus.

O pensamento político contido na Cidade de Deus forja-se no encontro de duas tradições: a da cultura greco-romana e a das Escrituras judaico-cristãs. Da Antigüidade grega Agostinho retém as idéias de Platão (República e Leis). Traça, assim, os planos de uma cidade ideal, a Cidade de Deus, em contrapartida com a da cidade terrestre, em que predomina a guerra, a injustiça, o egoísmo etc. Para ele, a verdadeira administração de uma cidade deve estar baseada na justiça, e esta por sua vez na caridade, ensinada por Cristo.  

Origens do pensamento de Santo Agostinho

Santo Agostinho usou a filosofia a serviço da teologia, adotando as ideias platônicas e neoplatônicas e as moldando de acordo com a sua visão de mundo. Da mesma forma que Platão, acreditava que a alma habitava um corpo. Dizia: “O homem é uma alma racional habitando um corpo mortal”.

Em relação ao platonismo, o posicionamento de Santo Agostinho não é meramente passivo, pois o reinterpreta para conciliá-lo com os dogmas do cristianismo, convencido de que a verdade entrevista por Platão é a mesma que se manifesta plenamente na revelação cristã. Assim, apresenta uma nova versão da teoria das idéias, modificando-a em sentido cristão, para explicar a criação do mundo. Deus cria as coisas a partir de modelos imutáveis e eternos, que são as idéias divinas. Essas idéias ou razões não existem em um mundo à parte, como afirmava Platão, mas na própria mente ou sabedoria divina, conforme o testemunho da Bíblia. (Rezende, 1996, p. 77 e 78).

Fé, razão e revelação

Deixou formulado indicando o caminho para a sua solução – o problema das relações entre a Razão e Fé, que será o problema fundamental da escolástica medieval. Ao mesmo tempo demonstra claramente sua vocação filosófica na medida em que, ao lado da fé na revelação, deseja ardentemente penetrar e compreender com a razão o conteúdo da mesma. Entretanto, defronta-se com um primeiro obstáculo no caminho da verdade: a dúvida cética, largamente explorada pelos acadêmicos. Como a superação dessa dúvida é condição fundamental para o estabelecimento de bases sólidas para o conhecimento racional, Santo Agostinho, antecipando o cogito cartesiano, apelará para as evidências primeiras do sujeito que existe, vive, pensa e duvida.

6 — Bibliografia Consultada

RAEPER, W. e SMITH, L. Introdução ao Estudo das Idéias: Religião e Filosofia no Presente e no Passado. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 1997.

REZENDE, A. (Org.). Curso de Filosofia: para Professores e Alunos dos Cursos de Segundo Grau e de Graduação. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. 

TEMÁTICA BARSA - Filosofia. Rio de Janeiro: Barsa Planeta, 2005. 

São Paulo, fevereiro de 2016.


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