1 — O Cristianismo e a Concepção Grega do Mundo. 2 — Gnosticismo
e Neoplatonismo. 3 — A Patrística.
4 — A Mentalidade
Romana: O Direito e o Ecletismo. 5 — Santo Agostinho. 6 — Bibliografia
Consultada.
1 — O Cristianismo
e a Concepção Grega do Mundo
A
civilização ocidental é o resultado de uma dupla herança constituída, por um
lado, pelo pensamento grego e, por outro, pelo cristianismo. É importante
compreender a dimensão que o advento do cristianismo assumiu, perceber que
nosso pensamento não seria o mesmo sem essa herança, e que a civilização
europeia se debateu e ainda se debate nos limites estabelecidos por essa
religião — mesmo quando, já na modernidade, o tema da morte de Deus
se tornou recorrente.
A relação do cristianismo com a cultura grega clássica inclui várias facetas: desde a oposição, devido à sua natureza diferente — uma verdade revelada perante uma verdade racional —, até sua aliança diante da necessidade de repensar a realidade no contexto do pensamento cristão, sem esquecer as diferenças nunca superadas em sua concepção de mundo ou da divindade.
Fé e razão
Religião
e filosofia são duas formas diferentes, se não opostas, de se propor a
compreensão do mundo. O cristianismo é uma religião e, como tal, é um conjunto
de crenças reveladas que aceitamos por fé, por motivos extra-racionais. A
filosofia, ao contrário, tenta uma compreensão da realidade dentro dos limites
da razão. As ideias aceitas não são crenças, são pensamentos argumentados, raciocinados;
quer dizer, ideias para as quais podemos dar razões. Os âmbitos de cada uma
delas, fé e razão, também são diferentes: o da fé é o sobrenatural; o da razão,
o natural.
Mas, embora de natureza diferente, razão e fé mantêm, desde os inícios do cristianismo, uma profunda ligação, ainda que com muitas tensões. Desde o primeiro momento, uma minoria de cristãos cultos tentou não apenas crer, o que já faziam na condição de cristãos, mas também compreender o que tinha sido revelado pela fé.
Imagem de Deus
O
cristianismo, como se sabe, baseia-se na interpretação dos textos canônicos do
Antigo e do Novo Testamento: a Bíblia. Incorpora, portanto, elementos centrais
de uma tradição religiosa, a do judaísmo, criada ao longo de dois milênios
(desde 1850 a.C., aproximadamente). O resultado pressupõe uma concepção de
mundo distanciada da grega em aspectos fundamentais.
A cultura
grega é uma cultura politeísta — a crença em múltiplos deuses;
o cristianismo, pelo contrário — e a herança judaica se faz novamente notar —
é monoteísta — a crença em um único deus. É verdade que na
filosofia grega existem certas tendências monoteístas, como por exemplo nas
concepções de Platão e Aristóteles, mas elas convivem com o politeísmo.
A imagem
de Deus no cristianismo é a de um único Deus, criador, onipotente,
transcendente (está fora do mundo); um deus concebido como possuidor de
qualidades que expressam sua perfeição absoluta. Por sua perfeição e
transcendência, o divino forma uma realidade totalmente distinta da da
criatura, e infinitamente superior. Os antropomórficos deuses gregos não
aspiravam a nada semelhante: eles fazem parte do mundo, não estão fora dele, e
embora constituam uma raça que desconhece as imperfeições que caracterizam as
criaturas mortais — fraqueza, cansaço, sofrimento, doença,
morte —, não encarnam o absoluto nem o infinito.
Uma nova experiência do
tempo
Talvez a
novidade mais importante seja a de uma nova experiência do tempo, que tem, por
sua vez, implicações na concepção sobre a origem da realidade e na concepção da
história. Para os gregos, o tempo é circular, o que supõe, entre outras coisas,
a eternidade do que existe e a negação da criação do mundo. O cristianismo, por
meio da herança do Antigo Testamento, apresenta uma concepção linear do tempo,
uma concepção que até hoje é a nossa.
Deus, ser
onipotente, criou o mundo, e o criou a partir do nada, ex nihilo.
Esse princípio fundamental é profundamente alheio à maneira grega de pensar a
origem do nosso mundo. Para o pensamento grego, do nada, nada sai. Esse é um
princípio racional inquestionável. O mundo é um cosmos, um universo
imutável e ordenado, de movimento regular, no qual tudo se
repete eternamente — concepção do eterno retorno. Os dias
e as estações do ano passam, mas depois voltam; a primavera sucede ao inverno;
o que morre torna a nascer. Platão defende que o tempo, determinado pela
rotação das esferas celestes, é circular porque apenas imita a eternidade
imóvel. O movimento e o devir são níveis inferiores de uma realidade que no
fundo é permanente. O ser autêntico é eterno e imutável.
No
cristianismo, pelo contrário, não existe o cosmos, como estrutura eterna e
imutável. O que é é porque está no tempo. Deus cria o mundo e com ele o tempo.
A natureza da coisa criada é a de ser puro devir e contingência, cada
acontecimento é único, nada se repete, o que faz do tempo história no
sentido estrito da palavra: um processo linear, aberto; com um princípio (a
criação), um final (o advento do reino de Deus) e um acontecimento
singular que lhe dá seu sentido pleno: a encarnação do filho de
Deus. (Temática Barsa, 2005)
2 — Gnosticismo e Neoplatonismo
Nos
primeiros séculos de nossa era, coincidindo com o apogeu e declínio do Império
Romano, o pensamento filosófico tenta solucionar, seja dentro ou fora do
cristianismo, o problema do Bem e do Mal, que se polariza na antítese Deus e
Mundo e que divide a consciência do ser humano em opostos inconciliáveis.
O Mal,
que se identifica com a matéria de que o mundo é formado, provém da experiência
da dor, da doença e da morte. Não se trata, portanto, de uma categoria
exclusivamente moral, mas de um mal metafísico, próprio da condição finita e
contingente do ser humano, e do qual derivam os outros males. Frente a esse problema,
alinham-se duas correntes de pensamento. Uma está ligada à tradição das
religiões orientais, aos mistérios órficos-pitagóricos e a conhecimento
hermético: é o agnosticismo. A outra reformula o pensamento de Platão com o
objetivo de salvar esse profundo dualismo aberto no espírito humano: é o
neoplatonismo.
O Gnosticismo
O nome
dessa corrente de pensamento, que surgiu a partir do século II de nossa era,
deriva do grego gnosis, que significa "conhecimento". Não
se trata, porém, de um conhecimento conceitual, mas antes de um saber absoluto
adquirido pela via de uma iluminação intuitiva, reservada unicamente a alguns
iniciados.
O
gnosticismo seria apenas mais uma heresia entre tantas que o cristianismo
precisou enfrentar em seus primeiros tempos, se não se tivesse conectado com
uma força única ao universo inconsciente e arquétipo do homem. Esse universo
não se expressa por meio de conceitos, mas de imagens simbólicas. A arte e a
poesia sempre se alimentam delas, assim como todas as tradições esotéricas.
Do ponto
de vista filosófico, o que importa destacar é a dualidade com que se confronta
a consciência dessa época. A unidade grega entre o cosmos e Deus se rompeu, e o
Bem e o Mal se polarizaram em opostos inconciliáveis. De um lado, Deus, o
Bem supremo; do ouro, o Mundo que abriga a matéria, fonte de todo o Mal. E, no
meio dessa dualidade, o Homem. Todo o esforço dos gnósticos está voltado para
preencher esse abismo que separa o homem de Deus. A gnose é justamente o
conhecimento capaz de iluminar o caminho que leva à união desses dois extremos
separados pela matéria.
Uma vez
que Deus, o Bem supremo, não poderia ter criado o mundo em que existe o Mal, os
gnósticos tratam de encontrar um princípio supremo diferente de Deus que dê
conta da imperfeição e do mal que existem no mundo.
Basílides, um gnóstico que pregou em Alexandria entre os anos 120-140,
oferece uma resposta a esse extremo dualismo estabelecendo os princípios da
luz, causa do Bem, e das trevas, origem do Mal. As trevas não foram absorvidas
pela luz, mas de seu contato nasceu uma luz aparente que é a do mundo, mistura
do bem e do mal. Para Valentino, outro gnóstico do século II, o mundo é a
consequência de um esforço incompleto, porque não é obra de Deus — o princípio
supremo ou Pleroma —, mas de algumas das emanações produzidas pela divindade e
que presidiram as sucessivas transformações do Universo.
A doutrina das emanações:
Plotino
A emanação é
um dos conceitos-chave do começo da era cristã. Além dos gnósticos, que também
o emprega é Plotino (205-270), um pensador cuja obra, As Enéadas,
figura como a expressão mais elevada do neoplatonismo. Uma flor emana perfume,
um corpo luminoso emana luz. A emanação é, portanto, um processo pelo qual uma
coisa é causada por outra, que a determina ou a contém como princípio. Plotino
explica assim a criação do mundo, por meio de uma série de emanações de um
princípio supremo, o Um ou Deus, que exclui qualquer multiplicidade.
O Mundo
se divide em Mundo inteligível e Mundo corpóreo. O
primeiro é formado pelo Um. Do Um emana o intelecto (nous) e, numa
segunda emanação, do intelecto emana a alma do mundo (anima
mundi). O intelecto (que equivale ao Demiurgo platônico), ao ser
pensamento, apresenta uma cisão entre sujeito e objeto; abriga, portanto, o
germe da multiplicidade. Mas essa se encontra plenamente desenvolvida na mundo
corpóreo formado pela matéria. O Mal (ou seja, a privação de ser que origina o
devir) reside aí.
No
entanto, a anima mundi intervém também no mundo corpóreo como
princípio de unidade e indivisibilidade. A existência do homem, portanto, é um
corpo de batalha entre esse princípio unitário, que tende para o Bem (a união
com o Um) e a multiplicidade da matéria, que encaminha para o Mal (privação de
ser). Retomando às teses sobre o amor que Platão havia formulado no Fedro,
Plotino aponta um caminho interior, um retorno à mesmice, como via de ascensão
da multiplicidade presente na matéria à unidade que Deus encarna. É um caminho
de êxtases místicos que conduzem à fusão com o Um e que só é concedido aos
eleitos.
Essa
experiência interior, entretanto, na qual se abandonam a percepção sensível e o
pensamento discursivo, aparecerá com muito mais força em Santo Agostinho.
A tradição oculta
No início
da era cristã, o aparecimento do gnosticismo é o resultado de um encontro entre
a alma oriental e a alma ocidental. Depois, essa se separará para seguir o seu
próprio curso, revestida pelo cristianismo e pelo pensamento racional (herança
grega). No entanto, no decorrer da história, nem todo o pensamento perambulou
na Europa pelas sendas do cristianismo e do racionalismo. Existe também
uma tradição oculta cujo ponto de partida deve se fixar
justamente na gnose dos séculos II-III de nossa era. Nesta tradição confluem,
num primeiro momento, as doutrinas enigmáticas do Orfismo (de Orfeu, poeta
mítico do século VI a.C.), com sua crença nas transmigrações sucessivas das
almas. Ou na corrente esotérica do hermetismo (do deus Hermes
Trismegisto, que, por sua vez, provém de Tot, divindade lunar entre os
egípcios), que está relacionada com a astrologia e a alquimia.
Trata-se
de formas ocultas, esotéricas, com um fundo que historicamente bebeu das
religiões orientais. No Ocidente, essas formas reaparecem ao longo da Idade
Média, e inclusive da Idade Moderna, incluídas no Corpus hermeticus dos
alquimistas. Estão presentes ainda no Renascimento, na medicina astrológica de
Paracelso e podem ser rastreadas em grandes obras literárias, como no Fausto,
de Goethe. Já em nossa época, aparecem nos domínios da teosofia, ou foram
objeto de uma profunda exploração por parte da psicologia analítica de C. G.
Jung. Nessa tradição oculta, de raiz mística, busca-se sempre o encontro com
Deus, com o Um, de forma íntima - seja na solidão das retortas alquímicas, onde
se opera a transmutação dos metais, seja no contato com uma seita ou grupo do
qual se é adepto ou iniciado. (Temática Barsa, 2005)
3 — A Patrística
Um dos
fatos de maior transcendência ocorrido na história do pensamento ocidental é a
adoção que o cristianismo faz da filosofia grega, durante os primeiros séculos
de nossa era. Nossa cultura ocidental não poderia ser entendida sem essa
síntese laboriosa que os padres da igreja realizaram ao longo de setecentos
anos. O resultado dessa obra, quer dizer, a elaboração doutrinal que estabelece
uma continuidade com o mundo antigo pela via da razão e com o mundo cristão
pela via da revelação é conhecida pelo nome de patrística.
A helenização do
cristianismo
Historicamente,
o cristianismo, desde o seu aparecimento na Palestina, expandiu-se de forma
gradual pelo Mediterrâneo. Foi constatado que a queda de Jerusalém nas mãos dos
romanos (ano 70) deu maior peso àquelas regiões da Grécia e da Anatólia que
haviam sido evangelizadas por São Paulo. Mas esses fatos, apesar de
importantes, não explicam totalmente a envergadura do processo de helenização
experimentado pelo cristianismo desde suas origens.
A
passagem sucessiva de Jerusalém a Atenas, e depois Roma como centros de
expansão cristã é fomentado, desde logo, por uma série de vicissitudes
históricas, mas dá conta, também, de uma espiritualização cada vez maior dos
conteúdos cristãos. Pouco a pouco, vão-se abandonando as concepções
apocalípticas, mais típicas do judaísmo, que viam a salvação como algo
imediato, e passa-se a interpretá-la como uma forma de salvação espiritual. Não
se espera, portanto, uma redenção imediata do sofrimento e da morte, existe, em
lugar disso, uma necessidade de aprofundar os conteúdos da verdade revelada,
para manter viva aquela esperança originária da salvação.
É quando
aparece no cristianismo, a necessidade de adotar os instrumentos conceituais
forjados na cultura grega, e assim tem início aquela elaboração doutrinal dos
padres da igreja conhecida como "patrística".
Tertuliano e Orígenes
Há nesta
época (séculos I-III) dois pensadores cristãos de grande relevo que, com sua
obra, já indicam as possibilidades resultantes de uma síntese entre
cristianismo e filosofia.
Nascido
por volta de 155 em Cartago, Tertuliano é o expoente de um cristianismo baseado
na fé, no fundo racional da alma, isto é, no puro sentimento, e que, justamente
por isso, quer prescindir da filosofia. Expressa, portanto, uma tendência
contrária à da patrística, e será posto à margem pela igreja, apesar de haver
criado o latim eclesiástico e haver combatido o gnosticismo.
A atitude
de Tertuliano, contudo, é precursora de um cristianismo místico e vivencial que
encontrará sua máxima expressão na síntese agostiniana de razão e fé.
Um caso
diferente é o de Orígenes, que nasceu por volta do ano 185 em Alexandria. Autor
de uma vasta obra composta de escólios, homílias e comentários, Orígenes é o
primeiro grande sistematizador da teologia cristã e, por isso mesmo, o primeiro
criador de um sistema filosófico cristão, ao qual incorpora elementos
neoplatônicos e até gnósticos. É ele quem define a orientação filosófica que os
padres da igreja vão seguir, e sua influência chega até a escolástica medieval,
embora com muitas tensões.
No século
VI, os partidários desse pensador, que alimentam a corrente do origenismo,
serão condenados pela igreja ao defenderem a crença na eternidade do mundo e na
doutrina da preexistência da alma.
A patrística
Com esses
precedentes (progressiva helenização do cristianismo e os primeiros esforços
para conciliá-lo com a filosofia), a patrística surge a partir do século II,
com são Justino. Como doutrina dos padres da Igreja, procurou unir o pensamento
grego (especialmente o platônico e o neoplatônico) às Sagradas Escrituras. Ao
mesmo tempo, a patrística é uma doutrina que se forja na luta contra o
paganismo e na depuração teorética exigida pelo esforço de diferenciar-se de
heresias como o gnosticismo, o arianismo, o maniqueísmo, o monofisismo.
As questões
que mais preocupam os padres da igreja são as mais importantes levantadas pelo
dogma. A criação, a revelação de Deus com o mundo, o mal, a alma, o destino da
existência e o sentido da redenção são problemas fundamentais da patrística. E
também questões estritamente teológicas, como as que se referem à essência de
Deus, à trindade das pessoas divinas etc. Por último, problemas morais que vão
conduzir ao estabelecimento de uma nova ética que, embora utiliza conceitos
helênicos, se fundamenta, na graça e na relação do homem com seu criador, e
culmina na ideia da salvação, estranha ao pensamento grego.
A
patrística chega ao seu auge com o pensamento agostiniano. Clemente de
Alexandria, são Gregório Nazianzeno, são Basílio, são João Crisóstomo e são
Jerônimo trouxeram contribuições da máxima importância a essa corrente de
pensamento que perdurará (ainda que com menor força após a morte de santo
Agostinho) até o século VIII.
O pensamento de Tertuliano
Para
Tertuliano, Atenas e Jerusalém nada têm em comum: fé em Cristo e Sabedoria
humana se contradizem (daqui sua célebre afirmação: credo quia absurdum).
Na verdade, a alma é naturaliter christiana e é a cultura
filosófica que a afasta da verdade. Tertuliano assumiu, talvez de Sêneca, uma
concepção corpórea da realidade e do próprio Deus.
Tertuliano
contrapõe os filósofos aos cristãos do seguinte modo: "Em seu conjunto,
que semelhança pode-se perceber entre o filósofo e o cristão, entre o discípulo
da Grécia e o candidato ao céu, entre o traficante de fama terrena e aquele que
faz questão de vida, entre o vendedor de palavras e o realizador de obras,
entre quem constrói sobre a rocha e quem destrói, entre quem altera e quem
tutela a verdade, entre o ladrão e o guardião da verdade?"
Platonismo e cristianismo
O platonismo
é o sistema que proporciona ao cristianismo o esquema conceitual básico. De um
lado, a corrente platônica — definitivamente impulsionada pelo
neoplatonismo — era na época a mais vigorosa e dominante; além disso, era
a que oferecia mais pontos de contato com a doutrina cristão.
Os
aspectos da concepção platônica que ofereciam mais possibilidades para a
formulação das ideias cristãs são os seguintes. Em primeiro lugar, a existência
de dois mundos, um sensível e imperfeito e outro inteligível e perfeito. O
cristianismo situa as ideias na mente de Deus: o mundo perfeito é o divino. Da
mesma forma como para o platonismo o mundo sensível foi feito à imagem e
semelhança das ideias, para o cristianismo a criação leva também a marca das
ideias do Criador. Mas, apesar dessa presença de Deus na criação, os filósofos
cristãos não deixam de sublinhar a contingência da coisa
criada (a coisa criada é, mas pode não ser: não possui o ser por si mesmo, mas
o recebe de Deus) e, com a contingência, a dependência de seu ser em relação ao
Criador. Por outro lado, os cristãos acreditaram encontrar a própria ideia de
criação prefigurada no Demiurgo platônico. Por último, tanto Platão quanto o
neoplatonismo, ao situarem a ideia do Bem no topo da hierarquia, abriram
grandes possibilidades ao cristianismo para expressar o monoteísmo. (Temática
Barsa, 2005)
4 — A Mentalidade Romana: O Direito e o Ecletismo
As
contribuições dos romanos à história do pensamento ocidental são bem mais
escassas, se as considerarmos de um ponto de vista teorético. Roma, nesse
sentido, deve ser vista como uma transmissora do pensamento grego, e sua máxima
contribuição consiste na adaptação das ideias gregas ao mundo latino.
Nesse
papel de transmissão e adaptação, os romanos são ecléticos. O ecletismo, cujo
representante mais ilustre é Cícero, é apenas uma seleção de verdades
correspondentes a diferentes sistemas filosóficos, tendo como critério o senso
comum.
Não é
nesse aspecto que se deve procurar a originalidade das contribuições romanas.
Estas se encontram no desenvolvimento peculiar do estoicismo de Sêneca,
Epicteto e Marco Aurélio e, especialmente, no direito romano.
O ecletismo: Cícero
A figura
de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) é fundamental para se compreender o jogo
mental característico dos romanos. Nessa mentalidade, o interesse se concentra
nas conclusões, mais do que nas premissas, e nas soluções práticas dos
problemas, mais do que em sua elucubração puramente teorética e abstrata.
A pedra
angular do pensamento ciceroniano se baseia no consensus gentium,
que dizer, em um consenso da maioria para aquelas questões metafísicas que
suscitam sérias dúvidas. Se não existe esse consenso, é prudente abster-se
(quer dizer, limitar deliberadamente o voo do pensamento; o homem romano é
prático e o que importa de forma prioritária é a ação)
O que
dizem — pergunta-se Cícero em sua obra Sobre a natureza dos
deuses — epicuristas e estoicos sobre a existência de Deus e a
imortalidade da alma? Que as duas coisas são indubitavelmente certas. E o comum
dos mortais, o que pensa a respeito? A mesma coisa. Logo, é correto.
E sobre a natureza da divindade, o que sabemos? Nisto existe discrepância
em saber "se os deuses estão completamente ociosos e inativos, sem tomar
parte alguma na direção e nos governo do mundo, ou se, pelo contrário, todas as
coisas foram criadas e ordenadas por eles em um começo, e são controladas e
conservadas em movimento por eles ao longo de toda a eternidade". Assim,
não podemos julgar nesse terreno.
A linguagem filosófica
A
contribuição mais importante de Cícero e da maioria dos pensadores romanos é a
criação de uma linguagem filosófica que constitui uma adaptação dos termos
filosóficos usados pelos gregos. Essa "versão romana" da filosofia
grega assumiu tamanha importância que, durante muitos séculos
(praticamente até o renascimento e mesmo depois), o pensamento do Ocidente a
usou como fonte direta (o que suscitará, na época contemporânea, a crítica de
Heidegger, por entender que com isso se perdeu o substrato original da
experiência grega).
O estoicismo romano
Dentro do
ecletismo geral da época, a filosofia estoica teve um especial destaque em
Roma. Os nomes de Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio, o imperador filosófico,
estão associados a uma forma de estoicismo de caráter ético que revaloriza mais
uma vez o ideal do sábio.
O
cordovês Lúcio Aneu Sêneca (3-65), por exemplo, propõe a figura do sábio como
homem forte, imune às variações da sorte e que luta mesmo quando foi derrubado:
um código ético para as classes dirigentes do Império Romano, formulado por um
filósofo que durante o mandato de Nero assumiu as mais altas responsabilidades
políticas e acabou por suicidar-se.
O
espiritualismo de Sêneca, no entanto, com seu canto à virtude e seu desprezo
pelas vaidades terrenas, teve uma profunda influência sobre o catolicismo
espanhol, a ponto de um historiador, Américo Castro, defender que suas raízes
têm parentesco direto com a idiossincrasia espanhola.
O epicurismo
A
tradição materialista de Epicuro é recolhida em Roma por Lucrécio (94-55 a.C.),
autor de uma vasto poema, Sobre a natureza das coisas (De
rerum natura), em que procura dar uma explicação científica para os enigmas
do Universo. Pensador isolado, que na época da revolução científica
(século XVII) será revalorizado por seu caráter precursor, Lucrécio defende que
a alma é material e o Universo nem é criado nem destruído, já que sua matéria é
infinita. É notável também sua teoria do conhecimento, que se baseia nas
sensações, assim como sua afirmação de que a religião é contrária à ciência.
O direito romano
Aquilo
que importa na mentalidade romana é, antes de mais nada, a organização da vida
social mediante regras e preceitos. No início, essas regras jurídicas se
confundem com as próprias tradições religiosas dos romanos. Depois (e trata-se
de uma evolução que abarca mais de mil anos, já que se inicia com a fundação de
Roma, no século VIII a.C. e termina nos séculos V-VI de nossa era), os plebeus
conseguem que os princípios jurídicos fundamentais recolhidos na lei das Doze
Tábuas sejam declarados publicamente. Isto estabelece um grande passo para a
igualdade política. É nessa época que aparecem os juristas e
se abre um processo de secularização do direito (quer dizer, uma emancipação do
direito em relação aos preceitos puramente religiosos). Nessa etapa a figura
fundamental é a do pater familias.
A
expansão de Roma para além dos confins da península Itálica e o contato com a
cultura grega ampliam os horizontes de um direito ainda comprimido nos limites
de uma estrutura social determinada pela existência de pequenos proprietários
rurais. Em primeiro lugar, assegura-se um direito baseado no costume: é o
fundamento do direito civil (jus civile); depois, estabelecem-se
as bases de um direito internacional com o jus gentium, o direito
dos povos, que se aplica aos cidadãos. Um novo passo nessa evolução diferenciadora
das normas ocorre quando o direito civil e o direito dos povos se reúnem no
âmbito do jus publicum (direito público que se refere às
relações com o estado) e se distinguem do direito privado (jus privatum).
A
história jurídica de Roma termina no século VI, quando o imperador de Bizâncio,
Justiniano I, compila as leis romanas no Corpus juris civiles.
Então começa outra história: a da aplicação do direito romano a todos os povos
romanizados da Europa. (Temática Barsa, 2005)
5 — Santo Agostinho
"Dai-me
castidade e continência, mas não agora." Confissões
A iluminação agostiniana
De acordo
com a exigência socrático-platônica, santo Agostinho busca a verdade
necessária, imutável e eterna, que não pode ser facilitada pelos objetos
sensíveis, que sempre estão mudando, e aparecem e desaparecem. Também a alma é
contingente e mutável. Somente Deus é a verdade.
Encontra-se
Deus no interior da alma. Nela se realiza a descoberta de "verdades,
regras ou razões eternas" que nos permitem deliberar sobre as coisas
sensíveis. Mas, como essas verdades não podem nascer da alma, que é mutável, só
podem se explicar por iluminação divina. Como saberíamos, não
fosse a iluminação divina, o que é justo e o que é injusto? Se o sabemos é
porque daquela verdade se "copia" toda lei justa. (Temática Barsa,
2005)
Dados biográficos de Santo
Agostinho
Agostinho
(354-430 d.C.) nasceu em Tagaste, norte da África, quando o Império Romano
estava sendo destruído pelas invasões bárbaras. Seu Pai, Patrício, era pagão;
sua mãe, Mônica, posteriormente Santa Mônica, era cristã. Aos 16 anos, foi
estudar direito em Cartago, mas em 375 começou a se dedicar à filosofia, como
resultado da leitura de Hortêncio, de Cícero. Converteu-se ao
Maniqueísmo e tornou-se professor de retórica em Roma, em 383. De Roma, foi
para Milão, onde se viu tomado pelo carisma do bispo cristão Ambrósio. Por
algum tempo, atraiu-o o neoplatonismo, mas depois de longa e dolorosa luta
tornou-se cristão em 386, recebendo o batismo de Ambrósio na Páscoa de 387. Sua
intenção era levar uma vida “monástica”, mas em 391 foi ordenado, contra a sua
vontade, bispo de Hipona (hoje Annaba, na Argélia). Foi bispo durante trinta e
quatro anos, tempo em que escreveu copiosamente, combateu heresias e viveu em
comunidade com outros cristãos. Aos 76 anos de idade, foi morto Hipona, durante
cerco da cidade pelos vândalos. (Raeper, 1997, p. 25)
As duas principais obras
deixadas por Santo Agostinho
Confissões
As Confissões de
Santo Agostinho, iniciada em 391 e concluída em 400, é uma obra fascinante. São
treze livros, dos quais 9 auto-biografados e 4 teologais. Nela se apresenta
como o Filho Pródigo e a Ovelha Perdida do Evangelho de Lucas – perdido e
depois encontrado, tal como o apóstolo Paulo.
Procura
mostrar pelo seu exemplo o que pode a graça para os mais desesperados dos
pecadores. Com admirável franqueza e contrição confessa os desregramentos de
sua mocidade (teve inclusive um filho bastardo, Adeodato), sempre atribuindo a
si mesmo as tendências perversas e a Deus os progressos de seu espírito para o
bem. Foi um homem em permanente batalha contra as suas próprias emoções e
fraquezas.
Discute
também questões acerca do tempo e a presença do mal no mundo.
Cidade
de Deus
Os
principais temas são: a vontade humana, as relações entre teologia e razão e
divisão da história entre as duas cidades – dos homens e de Deus.
O
pensamento político contido na Cidade de Deus forja-se no
encontro de duas tradições: a da cultura greco-romana e a das Escrituras
judaico-cristãs. Da Antigüidade grega Agostinho retém as idéias de Platão (República
e Leis). Traça, assim, os planos de uma cidade ideal, a Cidade de Deus, em
contrapartida com a da cidade terrestre, em que predomina a guerra, a
injustiça, o egoísmo etc. Para ele, a verdadeira administração de uma cidade
deve estar baseada na justiça, e esta por sua vez na caridade, ensinada por
Cristo.
Origens do pensamento de
Santo Agostinho
Santo
Agostinho usou a filosofia a serviço da teologia, adotando as ideias platônicas
e neoplatônicas e as moldando de acordo com a sua visão de mundo. Da mesma
forma que Platão, acreditava que a alma habitava um corpo. Dizia: “O homem é
uma alma racional habitando um corpo mortal”.
Em
relação ao platonismo, o posicionamento de Santo Agostinho não é meramente
passivo, pois o reinterpreta para conciliá-lo com os dogmas do cristianismo,
convencido de que a verdade entrevista por Platão é a mesma que se manifesta
plenamente na revelação cristã. Assim, apresenta uma nova versão da teoria das
idéias, modificando-a em sentido cristão, para explicar a criação do mundo.
Deus cria as coisas a partir de modelos imutáveis e eternos, que são as idéias
divinas. Essas idéias ou razões não existem em um mundo à parte, como afirmava
Platão, mas na própria mente ou sabedoria divina, conforme o testemunho da
Bíblia. (Rezende, 1996, p. 77 e 78).
Fé, razão e revelação
Deixou
formulado indicando o caminho para a sua solução – o problema das relações
entre a Razão e Fé, que será o problema fundamental da escolástica medieval. Ao
mesmo tempo demonstra claramente sua vocação filosófica na medida em que, ao
lado da fé na revelação, deseja ardentemente penetrar e compreender com a razão
o conteúdo da mesma. Entretanto, defronta-se com um primeiro obstáculo no
caminho da verdade: a dúvida cética, largamente explorada pelos acadêmicos.
Como a superação dessa dúvida é condição fundamental para o estabelecimento de
bases sólidas para o conhecimento racional, Santo Agostinho, antecipando
o cogito cartesiano, apelará para as evidências primeiras do
sujeito que existe, vive, pensa e duvida.
6 — Bibliografia Consultada
RAEPER,
W. e SMITH, L. Introdução ao Estudo das Idéias: Religião e
Filosofia no Presente e no Passado. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São
Paulo: Loyola, 1997.
REZENDE,
A. (Org.). Curso de Filosofia: para Professores e Alunos dos Cursos de
Segundo Grau e de Graduação. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
TEMÁTICA
BARSA - Filosofia. Rio de Janeiro: Barsa Planeta, 2005.
São
Paulo, fevereiro de 2016.
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