Título: Bíblia: Uma Breve Introdução
Autor: John Riches
Tradução: Denise Bottmann
RICHES, John. Bíblia: Uma Breve Introdução.
Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre, RS: L&PM, 2016. (Coleção
L&PM POCKET; v. 1203)
Capítulo 1 — A
Bíblia no Mundo Moderno: Texto Clássico ou Texto Sagrado?
Diz-se que a Bíblia é o livro
com a maior quantidade de exemplares não lidos no mundo. Isso oculta um fato
mais significativo: a Bíblia ainda é um dos livros mais importantes e mais
lidos do mundo.
Questão: Por que essa antiga coletânea de textos continua a exercer tanto poder na vida das pessoas em nosso mundo moderno, pós-colonial e pós-industrial?
O período da redação do Antigo
Testamento vai do século X ou XI a.C. ao século II a.C. O período da redação do
Novo Testamento é bem menor: 50 d.C. aos meados do século II. Foram escritos em
períodos com enormes variações nas condições de vida — políticas, culturais,
econômicas e ecológicas — de seus autores.
O período da composição dos
primeiros textos bíblicos corresponde à passagem da escrita cuneiforme para o
uso de um alfabeto.
A cultura no período bíblico,
embora tivesse registros escritos, continuou a ser basicamente oral. Ou seja,
os textos escritos eram transmitidos sobretudo pela leitura em voz alta: a
maioria das pessoas recebia os textos ouvindo, não lendo. Começou de forma
oral; depois que se tornou escrita.
Em se tratando do Novo
Testamento, o Evangelho de Marcos é, de modo geral, tido como o primeiro deles
e também o menos letrado. Lucas, em contrapartida, diz explicitamente que está
escrevendo como historiador grego que examinou cuidadosamente as fontes e está
redigindo uma narrativa fidedigna (Lucas 1:1-4).
No Gênesis, Deus faz surgir um
vapor que umedece a terra, e então a sua primeira ação é criar o homem/Adão
("Adão" em hebraico, além de nome próprio, significa também "ser
humano").
Como um escultor, Deus modela o
homem a partir do barro; como uma espécie de Frankenstein, adormece Adão,
tira-lhe uma costela e a transforma em mulher.
Os especialistas concordam que
as histórias derivam de quatro diferentes fontes escritas e que elas foram
reunidas ao longo do tempo, formando os primeiros cinco livros da Bíblia como
uma obra compósita.
A posição usual, embora não incontroversa, é que Marcos escreveu o primeiro Evangelho, e depois Mateus e Lucas utilizaram Marcos e outra fonte que consistia basicamente em frases atribuídas a Jesus, conhecida como Q.
Bíblia deriva do grego biblia,
que é o plural de biblion, livro. A Bíblia, no singular, oculta a
pluralidade dos livros. Um dicionário define a Bíblia como "Escrituras
cristãs do Antigo e do Novo Testamento", enfatizando a influência cristã.
A Bíblia aparece também em expressões como "a Bíblia hebraica",
"a Bíblia judaica", "a Bíblia cristã".
A Bíblia, no uso mais recente,
é ambíguo: pode referir-se à Bíblia judaica ou à Bíblia cristã, em suas várias
formas.
A palavra grega kanon
significa vara ou caniço e, por extensão, régua ou medida. Criar um cânone de
escritos sagrados é criar uma coleção que, em algum sentido, será normativo
para a comunidade a que se destina.
Os termos "antigo
testamento" e "novo testamento" entraram em circulação no final
do século II. Na origem, eles se referem respectivamente às alianças que Deus
havia feito com o povo de Israel por intermédio de Moisés e com a igreja por
intermédio de Jesus.
A utilidade de um cânone é
conferir autoridade a alguns livros e de negar autoridade a outros.
Os textos, depois de
canonizados, mudam. Tornam-se sagrados. Nas comunidades que reconhecem seu novo
estatuto, os fiéis o tomam como textos especiais, à parte, que não podem ser
tratados como os demais. Qualquer dissonância seria entre a experiência da
comunidade e o mundo do texto sagrado, o que reclama uma solução. Ou o mundo do
texto sagrado tem que se conformar à experiência da comunidade, ou a comunidade
tem de mudar para se conformar ao texto.
O estatuto canônico dos textos
deve explicar não só a riqueza e a diversidade das interpretações, mas também a
própria remodelação das narrativas e dos discursos. O mais frequente é uma
questão de ênfase, de leitura seletiva: alguns elementos são ressaltados em
detrimento de outros.
A crítica, em sua raiz,
refere-se ao exercício da faculdade de julgamento do indivíduo. Todavia, a expressão
"crítica bíblica" pode ter um sentido muito mais adversativo, quando
investe contra as interpretações eclesiásticas dominantes da Bíblia.
A Bíblia, conforme ensinava a
igreja, contava a história da reação de Deus ao pecado de Adão: com a escolha de
Israel e a entrega da Lei, culminando no envio de seu filho, Jesus, para a
redenção da humanidade. Havia uma notável adequação entre a Bíblia e o mundo
dos cristãos medievais.
Lutero, professor de estudos
bíblicos, põe em dúvida a autoridade da igreja. Baseando-se no texto paulino
que ressalta a fé pela fé: "Quem pela fé é justo e viverá".
Pesquisas históricas minaram as
bases da cronologia bíblica: descobriram provas da existência de civilizações
anteriores desconhecidas dos escritores da Bíblia.
Em se tratando da cosmologia,
Copérnico mostrou que os planetas, inclusive a Terra, giravam ao redor do Sol.
No século XIX, há os intensos
debates entre os darwinistas e os criacionistas.
O Iluminismo, com as luzes da
razão, tenta libertar o ser humano da autoridade da igreja.
Embora as críticas sejam duras,
há que se ver o lado positivo, ou seja, o estímulo para outras tentativas de
ler a Bíblia de forma criativa e imaginativa em contextos contemporâneos.
A história das leituras
coloniais e pós-coloniais da Bíblia oferece uma ilustração instrutiva de seus
usos e abusos. Os mesmos textos, dependendo da maneira como são lidos, podem
trazer a vida ou a morte às mesmas pessoas.
Há indicações contemporâneas de
que a Bíblia pode ser usada para levar consolo, força e libertação a
povos que vivem sob pressão.
Não nos deixemos dominar pelo
lado mais sombrio da Bíblia. Uma leitura crítica e atenta pode aguçar o nosso
senso moral.
A Bíblia é a grande fonte
primária da cultura europeia. A linguagem, as narrativas, as metáforas, os
personagens e as figuras oferecem um imenso repositório cultural, ao qual se
recorre de maneiras variadas, conscientes e inconscientes.
Uma parte do problema para a
nossa sociedade consiste em sua ignorância generalizada da Bíblia. Se não
sabemos o que nos condiciona, como podemos criticar e, menos ainda, recuperar
os elementos bíblicos em nossa cultura? Fica vedado o caminho para uma
avaliação e crítica mais profundas de nossa herança cultural. Igualmente vedado
fica o caminho para um uso mais libertador e redentor da Bíblia.
No Antigo Testamento, a vontade
de Deus e suas instruções ao seu povo abrangiam a totalidade da vida. A
mensagem de Jesus, no Novo Testamento, não é tão clara: defende uma ética que,
para muitos, parece irreal ou utópica: não resistir ao mal, amar os inimigos,
não prestar juramento.
Lutero não tem qualquer dúvida
de que os príncipes realmente são autorizados por Deus a ocupar tal cargo e de
que esse cargo inclui a perseguição e a punição capital dos transgressores.
Há muitas coisas na Bíblia que
são patriarcais, que exigem a submissão das mulheres aos homens e exaltam a
masculinidade em detrimento da feminilidade.
Há usos conflitantes dados à
Bíblia. Lutero e os principais reformadores a utilizaram para justificar o
poder da espada e para traçar uma divisão clara entre as leis que governam a
sociedade secular e os ensinamentos do Sermão da Montanha, destinado apenas aos
cristãos.
A Bíblia tem sido fonte de
verdade, bondade e beleza e, ao mesmo tempo, tem inspirado a mentira, a maldade
e a fealdade. Não gerou uma maneira homogênea de leitura e interpretação. E a
explicação disso é simples: os textos não têm controle sobre a forma como são
lidos. Escreve Robert Morgan: "Textos são como pessoas mortas, não têm
direitos".
Uma das características
notáveis da Bíblia é a sua idade. Os primeiros materiais têm cerca de três mil
anos de existência; a maioria deles tem dois mil anos e o Novo Testamento tem
só alguns anos a menos. O que é preciso são leitores com capacidade de
discernimento, atentos a seu potencial vivificador, em guarda contra seus tons
mais sombrios.
São Paulo, dezembro de 2016.
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