23 março 2022

Sócrates da “Apologia” e Sócrates de “A República”

Francisco Cabral Pinto, num trecho do prefácio do livro Os grandes sofistas da Atenas de Péricles, de Jacqueline de Romilly, com tradução de Osório Silva Barbosa Sobrinho, dá ênfase ao contraste existente entre o Sócrates-real da Apologia e o Sócrates-personagem de A República.

Começa por situar a semelhança entre a comédia de Aristófanes e o relato platônico sobre o processo de Sócrates na Apologia. Primeiramente, os termos de acusação. Tanto num quanto no outro, o filósofo é acusado de não crer nos deuses da cidade e de corromper a juventude. Nas Nuvens, o relato é o mesmo, mas com a vantagem da teatralização. No teatro, Sócrates morre por asfixia pelo fogo; na Apologia, por ingestão de cicuta.  

Detalhe: entre a primeira apresentação da peça (423) e o julgamento (399) passaram-se 24 anos.

Na Apologia, Sócrates explica as causas de suas insistentes interpelações na cidade pela necessidade de pôr à prova o oráculo de Delfos, que dizia ser ele o mais sábio de todos os homens de Atenas. A conclusão que ele chega é que ele era o mais sábio porque ele tinha a consciência de sua ignorância e, por isso, nada podia ensinar.

O Sócrates de A República. O diálogo situa-se entre anos 421 e 420. Sócrates tem 50 anos. Este Sócrates não teria duvidado do oráculo: ele assume-se como verdadeiro sábio, portador da verdade absoluta. Ele sabe e, por isso, ensina. Ele sabe o que é o bem e o justo. O seu modelo baseia-se nos três aspectos da alma: racional, irascível e concupiscente. Daí, a cidade deverá ser constituída de três classes incomunicáveis, a dos filósofos-reis, a dos guardiões e a do povo.

Há, contudo, filósofos legítimos e filósofos bastardos, e os últimos representam perigo para a cidade, e que será preciso livrar a cidade da sua má influência. “Platão, pela boca de Sócrates, assegura que, se os filósofos legítimos fossem chamados a ordenar uma cidade em conformidade com os padrões divinos, que só eles conhecem, não aceitariam fazê-lo  ‘antes de a receberem limpa ou de a limparem eles’”.

Nenhum comentário: